29 setembro 2009

Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração

caio f.

28 setembro 2009

você corre.
escuro e escorregadio, você corre. carrega contigo a força da pressa, da vontade. o ideal da conquista. os objetivos marcados em cada passo, em cada movimento. você dança. delicadas elevações, preparações corpóreas, o treinamento insistente e cansativo das sequências preparadas com cuidado e sem desculpas. você joga. é um jogo mal amado de exaustão, coragem e equilíbrio. o medo não existe. o mundo não existe, está todo condensado em você. uma curva errada e tudo se perde. a beleza intrínseca do limite material, do extremo, a superação estampada sob holofotes curvados e luminescentes, coloridos, holofotes híbridos na surpresa e na negação. nada está no lugar, mas tudo está sob controle. o controle, você.
você pisca.
entre um movimento e outro estão seus olhos. limpos. como em todos os olhos, um mar de profundidades, serenas e delicadas, quase nunca perceptíveis. você corre, mas não seus olhos. acompanham simplesmente, com a sutilidade indigna de um gato. ao primeiro olhar, completude. ao segundo, concentração. ao terceiro, desespero.
você pisca.
o desespero instantâneo, quase sádico, da percepção. você pulsa. mantém os movimentos equacionados, os passos no lugar, um automatismo do corpo experiente. enquanto isso, o grito. o corpo experiente e insatisfeito como todos os outros corpos. o corpo que obedece da forma única de obedecer, mantendo sutil o grito de rebeldia que não será ouvido senão por outro corpo. um outro corpo que, embora estático, pulse. que corpos são como bocas: obedientes mas mestres na arte da dissimulação, perigos constantes e ameaçadores ao controle imaginado. o corpo grita, sem controle. já não se ouvem passos, só o ofegar, cúmplice do coração. ao segundo olhar, movimentos não tão objetivos. estremecidos. curvas propositais, esculpidas inteiras em impulso, mas jamais despidas da beleza. os olhos são os mesmos. nada está no lugar, mas tudo está sob controle. o controle, corpo.
você obedece.

24 setembro 2009

fazendo amor

"Nietzsche estava certo: 'De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo - ler um livro é simplesmente algo depravado'. É o que sinto ao andar pela manhã pelos maravilhosos caminhos da fazenda Santa Elisa, do Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo Alberto Caeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver. Dizia ele que 'pensar é estar doente dos olhos'.

Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha memória. Assim, ao não pensar da visão, une-se o não-pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois, se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na memória poética, lugar da beleza.

'Aquilo que a memória amou fica eterno', tal como disse Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De novo, de novo, de novo...

(...)

Quando minha filha estava sendo introduzida na literatura, o professor lhe deu como dever de casa ler e fichar um livro chatíssimo. Sofrimento dos adolescentes, sofrimento para os pais. A pura visão do livro provocava uma preguiça imensa, aquela preguiça que Roland Barthes declarou ser essencial à experiência escolar.

Escrevi uma carta delicada ao professor, lembrando-lhe que Jorge Luis Borges havia declarado que não havia razão para ler um livro que não dá prazer quando há milhares de livros que dão prazer. Sugeri-lhe começar por algo mais próximo da condição emotiva dos jovens. Ele me respondeu com o discurso de esquerda, que sempre teve medo do prazer: "O meu objetivo é produzir a consciência crítica..."

Quando eu li isso, percebi que não havia esperança. O professor não sabia o essencial. Não sabia que literatura não é pra produzir consciência crítica. O escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres em literatura ou são de vida curta, ou são de vida longa e tediosa... Parodiando as palavras de Jesus, 'nem só de beijos e transas viverá o amor, mas de toda palavra que sai das mãos dos escritores...'."

Rubem Alves
 

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