19 setembro 2010

mudei

30 maio 2010


Tróia está em chamas; não quero nem saber. há seis meses tenho contado folhas, apenas, sem optar por nenhuma das grandes margens da rua. que queríamos mesmo no começo disso tudo? não importa. durante os dois últimos anos ouvia o mesmo diagnóstico: insatisfação crônica, insatisfação crônica, insatisfação crônica. uma doença, um horror, uma deformidade do comportamento humano, um mal a ser curado com pílulas. perguntei pela poesia: o quadro é grave, moça; poesia não resolverá.
as folhas mudaram muito nesses seis meses. eu, no entanto, permanecia imutável, empedrada, morta. insatisfação crônica, nada resolverá. pílulas. não é desassossego, não é demasiada ambição, não é tristeza pura e simples, não é euforia, bipolaridade, dislexia, vício, obesidade, labirinto, bulimia, lepra, depressão, insensatez, doçura, gripe, varicela. in-sa-tis-fa-ção crônica. crô-ni-ca.
li que era defeito. "a possibilidade de nunca se satisfazer", "desejar sempre além do que prospera, podendo levar à frustração intensa". o que é que queremos mesmo? casar, ter filhos. um apartamento ensolarado. a coleção "Grandes Pintores" da Folha de S. Paulo. um elogio por mês. salário de quatro dígitos, portão com controle eletrônico. li que era doença. o relógio mesmo disse, várias vezes, "Contenha-se!". me queria satisfeita, o pobre.
antes fosse lepra, bulimia, tristeza, qualquer coisa curável. diziam isso também. "dá de ter doença complicada assim tão nova". tomei chá, remédio, banho, fôlego, cortei unha, cabelo, fiz a barba que não tinha, passei pomada, creme, banha, curandeiro, psicólogo, cartomante, professor. nem tentei poesia. quadro grave, moça, num dá com poesia não. contei folhas, árvores e formigas. qual é o prêmio pra tanto pouco? não sabia o que se pode querer. não era questão de querer mais, era questão de querer outra coisa. mas o que é que se pode querer?
aí hoje de manhã o relógio desistiu, disse assim que pouco se fodia. aí eu retruquei que pouco me fodia eu também.
de um lado da rua as formigas diziam que a gente era único. queriam individualizar cada pedaço da calçada, porque as pessoas são diferentes. aquela baboseira. do outro lado se podia encontrar de um tudo pra curar qualquer doença que fosse. as incuráveis também. não podiam existir. é necessário que todo mundo esteja sa-tis-fei-to.


in-sa-tis-fa-ção

28 maio 2010

isn't life just a mirage of the world
before the world, before the world?

http://www.youtube.com/watch?v=YMPF6lpM0XM&feature=player_embedded

13 maio 2010

pausa para perguntar Cadê?

tenho ainda o costume de acordar primeiro pelo lado esquerdo, de pintar as unhas de tons sóbrios, de suco de goiaba antes de dormir. não bebo refrigerante, como carne vermelha, não uso lingerie de bichinhos. continuo tendo 30% dos meus livros não lidos e a média permanece sempre essa. sigo ficando nervosa com atrasos ou mentiras (apesar de que no caso dos atrasos tenho sido tão mais flexível). quando muito entediada, ou sem vontade de pensar, jogo o jogo das bolinhas. ainda não como tomate, ainda lavo o rosto antes de dormir, ainda prendo o cabelo em coque. ainda acho o jornalismo literário a coisa mais legal. ainda não gosto muito de fazer o que não gosto de fazer, embora tenha experimentado mais de perto o gosto dessas opções. ainda arrumo a minha cama e ainda faço sons engraçadinhos quando brinco com crianças. meu peito ainda me dói do mesmo jeito que sempre me doeu, ainda escuto as músicas que sempre tinha vontade de ouvir aos 12 anos, ainda parte de mim morre quando um amigo se afasta. ainda leio sentada na cama, ainda prefiro passar o dia todo descalça, ainda falo comigo mesma e ainda choro, às vezes, com drummond.
ainda sigo com a vontade de incendiar um objeto por dia, ainda tento beber 2 litros de água, ainda guardo os diários e cartas que recebi junto com os pequenos segredinhos.
tudo continua seguindo; mas onde foi que eu fui parar?




06 maio 2010

O menor dos incômodos


A mulher sentada na bancada número 2 tinha mãos jovens e dedos longos de pianista. Em conversas banais na hora do almoço, junto a pessoas que ela conhecia sem querer, costumava mentir que fora pianista de renome em Ijuí, cidade onde nasceu e cresceu e não fez nada mais que isso. Era de inventar pequenos detalhes e colocá-los meio à sua história, já que ela por si só era assim tão sem graça. Não havia uma casa com quintal onde ela brincava com seus irmãos ao por-do-sol. Tampouco havia irmãos, e o sol, quando baixava, baixava longe do primeiro pavimento do pequeno edifício da Sra. Maldona e ela não podia ver a não ser que subisse o morro, coisa que tinha preguiça. Não havia talento especial ou festas de fim de ano; vivia na melancolia indissolúvel das vidas comuns.

Nada de fato lhe incomodava e chegou a ir em um ou dois médicos, a fim de perguntar se era assim mesmo. Pensava como poderia não se incomodar, as pessoas à sua volta estavam sempre de rosto franzido, ou falando alto ao telefone, ou planejando fugas ou coisas que jamais irão cumprir, mas ainda assim as via reagindo a coisas que, para ela, eram sempre imaginadas como "grandes incômodos". Que não conhecia.

Era assim, incomodava-se de ter as meias sempre molhadas nos dias de chuva, ou de pequenos barulhos nas madrugadas. Mas não planejava modos de evitá-los e nem via motivos para tal.

O último médico lhe havia dito que incômodos não eram coisas das quais se deveria sentir falta: na verdade, era uma espécie de bênção não tê-los. Saiu da consulta pensando mas que médico idiota, mal imagina ele que a falta de incômodos é o pior incômodo de todos. Riu da própria contradição e esqueceu o assunto por todo o resto da semana de trabalho.

Só se lembrou no sábado, quando pensava o que faria com a begônia que tinha murchado. Não vive mais, pensou, e quis perguntar se ela então também havia deixado de viver, com a diferença de que não teria percebido. Ouviu alguns barulhos de carro na rua e pensou que, se o mundo fosse justo, não haveriam motoristas no paraíso. Logo, estaria viva.

Três semanas antes o carteiro lhe trouxera uma carta cujo envelope estava escrito à mão - coisa rara nestes dias. Dentro, um bilhete pequeno que convidava Olívia a arrumar suas coisas e partir. Partir para morar "lá".
Olívia não havia podido pensar sobre o bilhete até então. Até aquele sábado.
Procurou dentro de si e reconheceu o bilhete guardado, sozinho, na caixinha das "pendências". Era uma pendência bastarda, essa: não se podia arrumar. Cumprir. Possuía origem, mas resolvê-la requeria subsídios que ela não dominava. Não podia pensar sobre o bilhete, respondê-lo, decidir o que faria com ele. Não podia queimá-lo. Era indestrutível.

Para se distrair, passou a pensar em como seria caso fosse; largasse tudo e fosse morar lá. E se eu fosse. A primeira consequência construída nos pensamentos de Olívia foi o destino de seu posto de trabalho: seria substituída com alguma pena mas nenhum esforço, não que Olívia não fosse boa e competente, mas também não era a única a poder manejar as necessidades da bancada número 2. Alguns documentos importantes, algumas assinaturas, entregariam o dinheiro, registrariam as trocas. Comprovante. Obrigada, até logo.
Pensou depois no apartamento. Entregaria para alguma amiga, algum parente? Venderia? E todas as coisas, os móveis, os livros, doaria tudo para uma instituição de caridade ou coisa parecida. Se fosse, o apartamento não seria um problema. Poderia também deixá-lo, simplesmente. Essa mania das pessoas de querer resolver até o que não é um problema.

Chegou ao fim da lista; não conseguia pensar em mais nada que poderia ter de arrumar. Se fosse, poderia ir amanhã, assim que o sol surgisse. Ou antes, até. Poderia ir hoje, se quisesse. Tinha um dinheiro na bolsa, era questão de preparar um lanche e uma maleta pequena. Dois vestidos simples, uma ou cinco camisas, escova de cabelo, maquilagem.

Arrumou a maleta, jogou a begônia no lixo - não sem remorso -, passou um café. Sentiu um carinho enorme por cada um dos móveis dispostos no apartamento. Limpou um por um, com calma. Organizou cada um dos seus pertences, colocou os livros em ordem de tamanho, sacudiu as almofadas, as colchas, passou uma água nas louças. Ajeitou o banheiro, a área da lavanderia, o corredor.
Separou as roupas que lembrava que agradavam as amigas e empilhou-as todas em uma sacola perto da porta.

Abriu as janelas, a noite já havia passado e o sol começava a nascer em um céu cinza e púrpura, em um horizonte que não podia imaginar onde ficava. Achou a paisagem um dos espetáculos mais bonitos de qualquer semana.
Pensou que, se fosse, quando o visse novamente ele já não seria o mesmo.
Ela também.

Abriu a maleta, buscou a camisola. Vestiu. Deitou-se na cama recém arrumada.



04 maio 2010

I

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.

Manoel de Barros - O livro das Ignorãças



"tiveram quatro filhos. todos homens. todos cabeludos."

14 abril 2010

uma canção muito triste

sabiá lá na gaiola fez um buraquinho
voou, voou, voou, voou
a menina que gostava tanto do bichinho
chorou, chorou, chorou, chorou

sabiá fugiu do terreiro
foi cantar lá no abacateiro
a menina vive a chamar:
"vem cá, sabiá, vem cá"

a menina diz soluçando:
"sabiá, estou te esperando"
sabiá responde de lá
"não chores que eu vou voltar"


e eu, quando era pequena, chorava toda vez que ouvia

08 abril 2010

ventar

"- aos 16, tu era a coisa mais linda do mundo, eu acho. sabe quando tu coloca um pouco de água na tinta? parece que foi isso o que aconteceu com você. a vida te diluiu.
- de alguma forma isso me alegra, quero mesmo ser mais leve. acho que perdi o medo."

04 abril 2010


começarei a ser feliz para sempre em um domingo em que haverá feito sol o dia inteiro. digo haverá feito porque só começarei a ser feliz depois do entardecer - na verdade, será noite. será depois de um show do ney matogrosso, em algum momento entre a entrada e a taça de vinho de algum restaurante próximo, mas nada muito caro, não vamos querer esbanjar dinheiro. falaremos - eu e alguém que não existe - sobre a voz de ney matogrosso e da interpretação de Mulher Sem Razão, elogiando e atacando, e eu já poderia dizer quem faria o quê. eu vou falar de como ney matogrosso é bacana e de como sua voz arranjada me causa aquela mesma agonia interna e vou me sentir mal por estar dizendo coisas que não gosto de dizer mas bem nesse momento vai entrar a sua risada e minha primeira sensação de felicidade e também a primeira sensação do eterno. ouvirei coisas como julgamentos precipitados de participantes do big brother com as quais não vou concordar mas não vou ficar irritada porque o ambiente é quente e a comida está boa e seus olhos estão refletindo as doze lâmpadas que haverão naquele que será o lustre mais lindo que já terei visto na vida. começarei a ser feliz para sempre naquela noite. vou continuar saboreando o vinho, e vou gostar, mesmo não gostando de vinhos e não tendo a menor propriedade no assunto. vou dizer que está bom e vou ouvir algo semelhante que não repito aqui porque não será de relevância alguma, já que será apenas a pequena explosão que antecederá uma conversa longa e interessada sobre como será que os sagus são feitos. depois, daremos risadas e falaremos sobre veados, chifres, quadros de monet e nossa ignorância nas artes plásticas, como são caros apartamentos no centro, o que é preciso para conseguir um crédito para financiar uma casa e sobre como eu sei passar a 60 km/h em lombadas. vou começar a ser feliz para sempre enquanto aguardo retornar do banheiro logo após de cerca de 1,4 minuto de silêncio que encerrará uma discussão exaltada acerca da hipocrisia da vida e da péssima influência da terapia na comunidade ocidental. começarei a ser feliz quando o prato começar a esvaziar e quando pagarei a conta e sairei levemente cheia de vinho do restaurante e prenderei o salto em algum dos buraquinhos das calçadas ou de um bueiro qualquer, não importa, será uma coisa que destruirá totalmente a aura romântica daquela noite e eu vou me lembrar de como levantei naquele mesmo dia de manhã, brava e ansiosa e com um olho maior do que o outro e uma mancha roxa na perna porque, naquele dia pela manhã, eu cairei. vou me sentir fraca e haverão pessoas na rua, algumas também estavam no show, poderei dizer, isso emendará mais um assunto do tipo opções culturais ou o próprio clima. vou começar a ser feliz para sempre nesse túnel que não tem volta e cuja luz estará lá na frente brilhando tanto que não posso nem ver porque minhas pupilas estarão dilatadas - entretanto, nenhum motivo daqueles, e tampouco é o ney matogrosso ou o vinho ou a noite ou qualquer outra coisa a coisa que mais vale a pena dizer agora. a noite acabará e virá outro dia e nada mais terá importância, porque eu estarei sendo feliz para sempre.

01 março 2010

"falar com ele me deixava louca. ele mandava de longe notícias com cheiro de outono e contava as cores dos vestidos das mulheres que cruzavam a 5th ou o barulho dos carros da 9th, que não o deixavam dormir, mas estava tudo bem porque o apartamento era bom e ele pagava quase o mesmo de um lugar desses que são comuns no brooklyn. eu ouvia cansada e tentava acompanhar depois de um dia inteiro de trabalho e dessas minhocas que comiam minha cabeça e não lembro o que estava tocando mas bastou uma brisa entrar pela janela que eu percebi como era o colorido pálido daquele momento e desatei a chorar. ele perguntou o motivo do meu pranto repentino e tentou brincar dizendo que em mim era tudo assim repentino, em rompantes, que ele tinha sempre essa impressão de que se piscasse eu não estaria mais ali ao lado dele e eu me calei e procurei na memória a parte funda de seus olhos, tentando encontrar a parte de mim que de repente se perdeu."

28 fevereiro 2010


deitou na cama acompanhada de algum formigamento, alguma sensação de separatez. o céu permanecia no amarelado das luzes da praça, refletidas na massa de sereno que pairava pesada sobre todas as coisas. de alguma maneira sem linhas era diferente daquilo de que ela sentia saudade. se esticava e alcançava com os dedos do pé a borda da cama e pensava como podia caber e não caber ao mesmo tempo, ficava surpresa sempre mesmo estando também sempre mergulhada na translucidez.
gostava assim das camas de hotéis porque sentia que elas, tão delicadamente, jogavam-na na realidade da sua existência, apenas uma a mais, nada do especialismo de que as pessoas falam ou lutam todos os dias e incessantemente para conseguir provar. camas de hotéis vinham sempre pesadas das marcas dos outros e sempre jogavam-na levemente pra fora, fazendo-na lembrar de que haveria de partir. não sentia a partida aquela noite, e fazia tanta falta, aquela filosofia noturna dormente dos dedos dos pés contra algo que não se poderia conhecer, um escuro banal e malfeitor.

04 fevereiro 2010


. isla de uros, 2010

tenho duas estátuas no meu peito, esculturas fontes de água espessa. mármore, marfim, madeira, terra barro ou qualquer outro material do mundo que o mundo come por prazer, o badalar de um sino que não se ouve ou a corredeira de inúmeros sóis desconhecidos, estrelas, cometas, vulcões, não se sabe - quem saberia? desejaria talvez marcar o tempo em linhas que não fossem tão difíceis de se engolir ou que se transformassem, diariamente, nas gotas não-humanas de um suor que escorre pelo corpo leve, claro, de rendas e flores, adorador dos dias quentes. pensei propor-lhe uma vida de lascívia sem margens ou heróis; ouvi o canto doce e esmureci. talvez fossem elas a minha parte que valesse nessa vida densa, escura e lenta, costurada espaço-tempo nessa teia de loucuras.




26 janeiro 2010

isla de uros, 2010

quis saber o que é o desejo, de onde ele vem
fui até o centro da Terra e é mais além
procurei uma saída e amor não tem
estava ficando louco, louco, louco

chico

24 janeiro 2010

a flor da basílica de são francisco



quando cheguei fazia sol e as tantas gentes amontoadas me buscaram na memória aquele sentimento velho de meu deus, quanta gente há no mundo. alguns poucos passos lentos e um "dale!" me lembrou, ainda, que esse é um mundo com pressa - mas naquele momento a pressa era sufocada por um grito de socorro estranhamente estampado em sorrisos. gentes por todos os lados que vendiam sabonetes, miniaturas de bebidas, pacotes de grãos umedecidos, pedaços soltos quase mortos de um musgo que deveria ser mais verde se cumprisse ao propósito de forrar os presépios de natal, como tentou dizer a moça que não falava aquela língua.

procurávamos uma xícara de café, provas vivas dos vícios que trazemos de casa, e pintávamos a água quente com aquela tinta escura e densa e adoçávamos com o que houvesse, e prestávamos atenção em tudo em volta. em uma das passarelas que cruzavam a avenida três meninas pequenas dançavam uma música sem som - estavam fantasiadas dos pés à cabeça, vestindo trajes típicos de uma bolívia reservada aos turistas, por vezes compadecidos, que largavam ali um ou dois pesos. uma dor sem nome marcava o rosto das mães, mas não era uma dor triste. parecia mais uma dor herdada de todas as outras coisas - os sabonetes, os grãos e os musgos vendidos em todas as esquinas por milhares de senhoras cujas costas já nascem naturalmente curvadas para baixo, lembrando tristemente aqueles burros de carga de uns tempos atrás. e as senhoras descem, mais de mil metros, todos os dias, até a basílica de são francisco. ali, e debaixo de lonas azuis ou brancas que não conhecem domingos, expõe suas posses no caso de algum passante se interessar.

não nos interessava. procurei por mais de um dia alguma senhora que por ventura fizesse, da prata que lá vale tanto quanto pão, um escapulário com uma imagem qualquer. não havia, e elas me diziam "no tengo" com uma voz de quem tem pena de si mesma por ter perdido uma venda. não era uma venda comissionada, ou uma venda que rendesse reclamações de um patrão ambicioso. a negação equivalia a alguma coisa que certamente fará falta - não a mim, nem a nós.

nenhum café ou musgo me fez triste - talvez uma tristeza fraca tenha vindo quando passamos, em uma das viagens pelas estradas de terra, por uma montanha riquíssima em minérios de todos os tipos administrada por uma empresa australiana - e seguimos pelos dias apenas observando e tirando pequenas conclusões (que talvez mais sejam opiniões infundadas do que qualquer outra coisa, dado o fato de sermos intrusos arrogantes que ainda não se livraram do sentimento de pena e de que sim, sabemos mais do que vocês, infelizmente, uma coisa meio podre mas completamente natural). não sei, talvez tenha sido mais ainda por javier, que deixou os cinco filhos em casa durante a noite de natal para fazer sopa de legumes e algumas batatas assadas, que nós (até) soubemos agradecer, ou talvez pela moça que, na mesma noite de natal, lavava pratos e copos em uma bacia com água e sabão contados a dedo e que não falava uma palavra aos dois filhos para não interromper o programa de tv que assistiam em cima da cama feita de palha.

viemos embora - não sei aos outros, falo por mim - sem saber se pensávamos mais nas batatas, nos filhos de javier, nos trovões que caíram a noite inteira ou nos intervalos de dez minutos que compunham a viagem de cinco horas até a cidade, e que eram marcados por bruscas mudanças de paisagem - ora um deserto, ora uma laguna cheia de flamingos, ora outro deserto (dessa vez, branco e salgado), ora uma ilha - que olhávamos sem comentar, numa espécie de desespero que me agrada e me agoniza e que mantenho sempre fresco, para não esquecer.

 

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