25 outubro 2007



Era segunda feira quando vi Antônia pela primeira vez depois de tudo. Ela estava bonita, arrumada, laço no cabelo, vestido daqueles que bate um ventinho e fluuuf, voa. Passou por uma daquelas ruas pequenas de trás da igreja, com pressa e batendo forte os pés no chão, como costumava fazer sempre, mesmo estando recém-acordada. Antônia tinha uma pele branca e fina que quase a fazia doente, mas tinha nos olhos cor de amêndoas uma vida inteira que ninguém sabia dizer onde é que poderia acabar.


Antônia passou, e antes que eu pudesse piscar os olhos, de estupefato que estava, ela sumiu pelos paralelepípedos. Não me arrependi. Que seria se a tivesse seguido? Se a tivesse visto? Se deixasse que mesmo pelo menor dos milésimos desse tempo do qual impulsivamente duvidamos a existência, tivesse mergulhado naquela vida sem fim dos olhos de Antônia? Não, nem pude. Mantive-me a salvo em solo firme, e distante, paralisado voluntariamente só por sentir que Antônia passava pelo mesmo espaço da Terra que eu.



Antônia sumiu pequena, e eu fiquei. Por algum motivo, alguma ironia, algum qualquer desses truques do destino que todo mundo reclama mas no fundo, bem no fundo, não vive sem, estávamos ali de novo, Antônia partindo e eu ficando. Diferente da outra vez, a dor que me acolheu ali foi uma dor miúda, daquelas que até dóem, mas têm como função verdadeira nos fazer companhia. Ali, sentados no degrau de uma pequena porta alheia, eu e minha dor-amiga, e não nos restava mais nada a fazer a não ser nos entregar de inteiro àquela sensação de paz. Antônia apareceu, de supetão, e sumiu assim rápido também, e me deixou de qualquer jeito que não sei descrever, mas é como se todo o ar pesasse tanto que seria impossível pensar em mexer os membros, e ao mesmo tempo o vento vem leve, e respiramos, e isso seria tudo.



Depois de segunda feira, não houve mais dia nenhum. Tudo se emendou e a noite juntava ao dia e o dia virava a noite que virava o dia que era o mesmo que a noite e a noite que não tinha fim seguia sempre, sempre, e eu e minha dor-amiga não vimos passar terça, ou quarta, ou sexta, porque todas as cousas condensaram-se em uma e nada mais podia dividir-se, e por fim não podia eu pensar mais nada a não ser que eu era a dor, que era a noite, que era Antônia - que partiu.





Imagem: Venus Terrae, Flor Garduño

8 comentários:

Flávia S. disse...

Dor-amiga.

madá disse...

''diferente da outra vez, a dor que me acolheu ali foi uma dor miúda, daquelas que até dóem, mas têm como função verdadeira nos fazer companhia.''

é tudo que consome, tudo que adormece no silêncio das palavras. e cada vez cresce mais a dor, antônia e eu.

julia disse...

"a dor que me acolheu ali foi uma dor miúda, daquelas que até dóem, mas têm como função verdadeira nos fazer companhia"

ah, iaiá, você escreve tão bonito :~

Anônimo disse...

Tenho acompanhado seu blog há um tempo e, cada vez que leio um texto novo postado, fico feliz de ter acidentalmente entrado nesse sítio. Seus contos - ou qualquer coisa que o valha - carregam uma beleza real doída que toda prosa poética deve ter.
Parabéns ;)

iasa monique disse...

obrigada, alexandre. de verdade :)

carla cursino disse...

Escreve bonito mesmo! E é tudo tão cheio de sentimento.

amanda audi disse...

escreve bem pra caralho, puta que o pariu!

Lubi disse...

Uma cor bonita presse dia frio e cinza de São Paulo.
Adorei o texto, lindo.

beijo.

 

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