28 agosto 2008

II

"Paula,

não sabes o quanto me recrimino por ceder mais uma vez a esse vício amigo da tinta no papel. Já começo assim, a justificar-me, mas tenho bons motivos (por um lado não quero te induzir ao medo mas alguma coisa à qual não sei dar nome me corrói em desejos de te fazer sentir culpada). Desde que paraste de ventar por estas bandas, tenho reconstruído aqui comigo mil versões daquele diálogo escuro e calado que tivemos dias atrás. Às vezes, por falta de uma verdade concreta para se agarrar, meu raciocínio me leva por caminhos confusos e penso que continuas a me tratar desse teu jeito cru só porque precisas de combustível para seguir, e os obstáculos reais dariam trabalho maior. Sou mais fácil. Sabes ler-me. Manipula. O pior de tudo é essa tua consciência, essa tua acidez, essa tua condição de saber quem és e como se portar. Conseguiste (não sei quais armas, quais conceitos, qual a cor que seguem teus argumentos, que são tão incontestáveis quando estás aqui mas que assim que dás as costas ficam tão leves que se perdem no ar, mas aí já é tarde e o coração já se cansou) mais uma vez me botar sem jeitos e não pude mais nada a não ser te olhar de novo com os olhos do amanhecer. Hoje, minha lucidez se faz presente, mas diga-me: que há na lucidez de amiga, que quando se faz necessária de verdade pula sapeca de um lado para outro, nos deixando tontos, e se esvanece no ar? Aí, estou em condição semelhante à essa em que não cansas de me colocar (não confio na lucidez, mas não posso simplemente mandá-la embora, escurraçá-la de mim, botar-me imune - preciso dela ainda, nem que dia sim, dia não, com intervalos compridos, lapsos que preencherei com essa vida paralela que me bostastes nos olhos, mesmo sem querer fazer parte).


serei breve hoje, e cada vez mais, como alguém que abandona o vício aos poucos, consciente das consequências que a vida lhe reserva. não considero mais meus desejos: não há lugar para eles nesse mundo que descobri não ser tão belo assim. ser frágil, podre, verde - mas ser e continuar sendo até que o tempo tenha ficado pra trás e nós, já sem certezas ou dúvidas, virado sopro.


Daniel."





"Sensatez,


tens de parar com isso, meu bem; precisas controlar-te. por um instante, ao sentir em tuas palavras a presença daquilo que vês em mim, quis chorar. não pude. mas não era isso que queria dizer. sinto se minhas lições de cuidado não se fizeram práticas em meu comportamento por esses dias, juro que acordo e anoiteço pensando em atitudes e julgamentos que crescem como pragas ao meu redor. mas sou difícil, não me convenço por pouco, tampouco sou amiga da fatia racional que me faz parte, somos como primas invejosas uma à outra e não unimos forças jamais, mesmo sob reprovação de toda a família.


estes dias passados, discutíamos sobre como as pessoa costumam ter sempre feição próxima à de algum animal. a linha do nariz é a mais comprometedora. em seguida, vêm os olhos. cheguei à conclusão que serias um urso, se bicho fôsses, e é assim que te sinto a presença, embora a ameaça não costume me botar medo. tento, incansavelmente, em frente ao espelho, transformar-me em bicho, mas ora sou peixe, ora morcego. "tola, enganas-te tanto", me disseram. "nem um nem outro, és raposa".


mas não sei porquê caí em contar-te este episódio, talvez mais uma dessas necessidades puras, quase doentias, de fazer-te conhecedor de mim. acho que o és, inclusive - não que seja grande mérito, que de mim não há o que se conhecer. sou reflexo de desejos e vontades (não os meus, os dos outros em mim), e não sei como é que funcionas assim tão sereno, que não te aborreces, não te cansas de mim, não me rasgas em pedaços e me deixas cair desfeita em partes pela pequena sacadinha que te afasta o céu azul.


na esperança de que não te preocupes, que confinuo defendendo contra todos aqueles que criticam os que não sabem ver um palmo à frente do nariz sem antes lhes perguntar se por acaso, algum dia, o quiseram.


Paula"


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