10 agosto 2008

"Querida Paula,

queria que tu soubesses de uma vez por todas o que se passa. carrego comigo no peito aquele amanhecer vermelho pálido e desajeitado, embora já tenha passado por tentações várias, do tipo esquecer em uma esquina qualquer, atear fogo, rasgar em pedaços, exagerar em narrações para desconhecidos na esperança de que tudo se dissipe. pobre de mim: mal sabia que a partir daquele amanhecer muitos outros se seguiriam, dia após dia. e, senão igual àquele, próximo o bastante para me encurralar as lembranças em um bote que não faz mais do que remar à toa.

perdoe-me se pareço desesperado ou se me muno do exagero para dirigir-me a ti; é que nesse teu jogo tu não deixas abertura pra agirmos de outra forma (sei que deves estar agora com mil argumentos e justificativas e tentativas de convencer-me do contrário; porém, já fizeste de tudo outras vezes, e há de acreditar que examinei cada atitude tua com uma minúcia que jamais imaginei dominar). quero dizer que - e acredito que já podes prever - não vejo explicação outra para isso que praticas sem escrúpulo algum a não ser a imaturidade digna das mulheres belas. aquela imaturidade que teimei por confundir com segurança, mas que confesso: tem efeito igual ou maior sobre os homens. de tudo que tu aparentas (digo nessas palavras porque nunca se sabe ao certo o que é que escondes por trás de certas atitudes: seria possível interpretar-te de mil outros jeitos e por não saber nunca com certeza e pelo medo de fazer de tolo é que você sofre solitária todas as noites: és vítima de si mesma) e para qualquer conclusão me baseio nessas pálpebras que tu apresentas assim com tanto domínio e que nunca estão mais abertas do que tu permites que estejam. acredito eu que essa é talvez a tua parte que mais me põe em fogo e que mais anseio por conhecer.

por fim, encaro com tristeza o rumo que dás as coisas e confesso que tenho andado fatigado desse jogo, mas por algum motivo que não saberia explicar mantenho ainda uma necessidade de correspondência. talvez, para convencer-me da não reciprocidade de tudo. mas apesar de tudo ainda recuso-me a acreditar que não sabes o que fazes e, concluindo assim que entendes da alma dos homens por vezes mais do que eles próprios, peço que entendas também que contra a esperança não há remédio a não ser matá-la.


meu receio se sustenta pelo medo da mágoa,
Daniel."







"Correnteza,

fugiram-me as justificativas. por mais que acredites que não, entendes de mim o mesmo tanto que eu mesma - por isso talvez saibas oferecer aos meus causos um veredicto mais justo do que eu própria poderia defender. contei-te, noutra vez, sobre o discurso de uma cigana que lia mãos que visitei certo dia (permita-me recordar, caso não o possas. tal cigana procurou em minhas palmas indícios de um futuro ou de um presente, e deixou claro que sua integridade não a permitiria de contar-me tudo por motivo de proteção. tudo o que me disse, porém, é que minha vida há de ser curta. não soube explicar se tal fato era o motivo ou a consequência desse meu vício incontrolável pelo impulso: não ouço nada a não ser o coração. e não sei dos outros, mas o meu é um menino levado, mimado e sapeca, e nem eu mesma consigo prever. é tão imprevisível que já acostumamos - eu e minha razão - a precaver próximos passos. paradoxal, tu dirias, e eu concordo. mas é assim que as coisas são e por mais que tentemos, para o desespero da humanidade, não é sobre tudo que podemos impor o controle. e penso que assim continue, querido, ou não haveria mais graça em se viver).

peço, portanto e humildemente, perdão às confusões que trago à superfície, e prometo dedicar-me em pensamentos à estratégias de cuidado maior daqui pra frente. mas me sinto também no dever de reforçar que minha promessa circunda às tentativas e não aos resultados: sou, acima de tudo, humana, e não tenho em pretensão comportar-me diferente. não tive outra escolha a não ser assumir minha natureza escorregadia e não tenho certeza sobre os rumos aos quais isso me levará; talvez seja uma sina essa cousa de não pertencer a ninguém. não se engane, coração: nunca foi meu desejo seguir assim um caminho sem direção. quando menos entendida sobre como as coisas passavam no paralelo do meu peito, sonhava em assumir um sobrenome, um protetor, conformar-me com a felicidade constante e acomodada. me vejo porém cada vez mais distante desse sonho, mas não me meto em encrencas comigo mesma: aceito apenas, convicta de que assim é que se deve ser.


sem cobranças quanto aos seus dias do momento em que ler essa carta em diante, e mergulhada na angústia que sabes traduzir sempre melhor dentre todos os outros, me despeço.
Paula"



1 comentários:

sandoval matheus disse...

iasa, preciso admitir uma coisa: vc manda bem pra caraleo.

(e isso não é rasgação de seda).

 

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