24 setembro 2009

fazendo amor

"Nietzsche estava certo: 'De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo - ler um livro é simplesmente algo depravado'. É o que sinto ao andar pela manhã pelos maravilhosos caminhos da fazenda Santa Elisa, do Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo Alberto Caeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver. Dizia ele que 'pensar é estar doente dos olhos'.

Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha memória. Assim, ao não pensar da visão, une-se o não-pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois, se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na memória poética, lugar da beleza.

'Aquilo que a memória amou fica eterno', tal como disse Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De novo, de novo, de novo...

(...)

Quando minha filha estava sendo introduzida na literatura, o professor lhe deu como dever de casa ler e fichar um livro chatíssimo. Sofrimento dos adolescentes, sofrimento para os pais. A pura visão do livro provocava uma preguiça imensa, aquela preguiça que Roland Barthes declarou ser essencial à experiência escolar.

Escrevi uma carta delicada ao professor, lembrando-lhe que Jorge Luis Borges havia declarado que não havia razão para ler um livro que não dá prazer quando há milhares de livros que dão prazer. Sugeri-lhe começar por algo mais próximo da condição emotiva dos jovens. Ele me respondeu com o discurso de esquerda, que sempre teve medo do prazer: "O meu objetivo é produzir a consciência crítica..."

Quando eu li isso, percebi que não havia esperança. O professor não sabia o essencial. Não sabia que literatura não é pra produzir consciência crítica. O escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres em literatura ou são de vida curta, ou são de vida longa e tediosa... Parodiando as palavras de Jesus, 'nem só de beijos e transas viverá o amor, mas de toda palavra que sai das mãos dos escritores...'."

Rubem Alves

2 comentários:

Anônimo disse...

Estava sentindo falta de suas publicações.

Gosto muito de Rubem Alves, mas delícia mesmo é ler você.

Jean Stedile disse...

taí outro cara que entende as coisas.

 

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