21 junho 2009

observação teórica II

a porta está fechada. é um apartamento claro de janelas grandes, e a luz da manhã invade a sala toda através das cortinas que balançam com o vento. uma janela está aberta e outra está fechada. há um retângulo de luz formado pelo sol direto, que ilumina o girassol. entre os dois sofás claros há um colchão posto ao chão. o colchão comporta um travesseiro branco, um lençol de flores claras, e rafael, que ainda dorme. no chão há um roupão branco, uma toalha de banho e dois travesseiros. as paredes são decoradas por quadros que estampam fotografias e a imagem de uma pintura à óleo. no aparador de madeira clara há um calendário, três porta-retratos e uma pintura com escritos de neruda. ana está despida, sentada em uma cadeira, e apóia os pés no sofá enquanto lê um pedaço de papel escrito à mão, em tinta azul.

O que corrói mesmo não é o que se faz ou se deixa de fazer - é o tempo, a idéia do tempo, esse ser suspirante e devastador, para criar um pouco de poesia com o que não se compreende

cristóvão tezza

20 junho 2009

tô meio ocupada sendo passional

17 junho 2009

não fosse isso

e era menos

não fosse tanto

e era quase




leminski

peito em flor

em luto aos dramas mesquinhos de todos os dias,
pra uma vida que se revelou outra tão de repente


tens os olhos jovens e os braços fortes e tua dor que é invisível para os outros pelo menos durante os próximos dez anos. teve o futuro chegando cedo demais e agora tens uma dor que não sei medir embora tenha achado por tanto tempo que as minhas eram assim tão compridas. vai ver eram só tripinhas de dor, coisinhas que precisavam só de um beliscão. não sei do que a tua dor precisa. queria saber do que ela precisa pra eu poder oferecer de peito aberto, sempre. queria saber pra poder confortar, poder dar colo, chão e céu. queria saber, queria entender, queria que você sentisse no abraço que não está sozinho. a dor que eu vi nos teus olhos me fez querer tanto me juntar a ti só pra que desses olhos pudesse sair, pelo menos, a solidão.

queria saber da tua dor pra dizer o que você precisa ouvir. é um momento tão teu que não posso evitar desejar desesperadamente fazer parte. hoje as coisas tiveram tons pastéis e só você era colorido. e as tuas cores eram tão bonitas.

tenho a te desejar alegrias, tristezas e mais daqueles momentos em que você pensa não querer estar em nenhum outro lugar senão ali. tenho a te desejar vida, apenas. de repente e pela primeira vez, tive vontade de colocar a minha à disposição. se isso se chamar amor, hoje você é mais importante do que qualquer coisa no mundo.

16 junho 2009

qual a diferença entre desistir e parar de tentar?


"São 'convenientes' as coisas que, aproximando-se umas das outras, vêm a se emparelhar, tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o começo da outra. Desse modo, comunica-se o movimento, comunicam-se as influências e as paixões, e também as propriedades. De sorte que, nessa articulação das coisas, aparece uma semelhança.(...) A alma e o corpo, por exemplo, são duas vezes convenientes: foi preciso que o pecado tivesse tornado a alma espessa, pesada e terrestre, para que Deus a colocasse nas entranhas da matéria."

Foucault

barthes, peirce e o meu desencantamento do mundo



a dança, matisse

filhos, textos e amores têm em comum a pior das características. nenhum deles jamais será teu. teu filho nunca será teu, teu amor nunca será somente teu. teus textos, sejam prosa, poesia ou dissertação, não importa: jamais serão somente teus. você os pare para o mundo, num processo tão intenso quanto dolorido de carinho e criação. e o mundo fará deles o que bem entender. porque um momento, mesmo que registrado documentado fotografado, é um momento morto: não volta mais. uma música ouvida, uma fotografia, um recado, são todos símbolos, memórias mórbidas de um passado que fez parte, mas morreu. não há presente. pode haver, ao máximo, a lembrança - o mais é todo ilusão.

qualquer fruto da criação (pode ser um texto em prosa, quem sabe) é lançado por ti para o mundo. o mundo terá seus próprios referenciais: podes fazer o melhor de ti ao produzi-lo, lançá-lo, construí-lo, mas o mundo fará dele o que quiser, e nunca será aquilo que você desejou. porque o mundo, como as pessoas, são assim munidos de tantas coisas, coisas que maculam as percepções e que tornam tudo uma outra coisa diferente.

teu amor é também fruto da tua criação. ele jamais será teu, ele é do mundo, e o mundo tem olhos verdes (o mundo e o ciúme de shakespeare). e podes debater, gemer, cansar, mas o mundo fará dele o que o mundo bem entender.

15 junho 2009


Cansou-se previamente das pequenas luas que ainda teria, revoltando-se e cedendo em seguida, até o fim.

clarice

14 junho 2009

querido diário,

hoje, quando acordei, a gata estava mastigando meu cabelo, como de costume. o sol já estava lá em cima, o termômetro do Itaú marcava 12 graus e o calendário da mafalda tinha quatro ou cinco itens que deviam ser resolvidos esse domingo. lembrei de andré e das músicas que a gente ouviu noite passada e botei nelson gonçalves pra tocar. fiz comida, arrumei a casa, recolhi a roupa, brinquei com a gata, empilhei na mesa os livros os quais vou consultar, as revistas que vou ver pra fazer o projeto do freela. um banho, um bombom de uva, um copo grande bonito e gelado de suco de melancia.


tem ferida aberta e tem peso no peito, mas o domingo acontece e a casa está em paz.

13 junho 2009

Perto da dor de saber
Que esse céu não existe
Que tudo o que nasce
Tem sempre um fim triste



vinicius e
tom (herança de gabriel)

conheci um velho triste.
o velho tinha a pele enrugada. tinha um escuro ao redor dos olhos, um escuro feio, úmido, enrugado. um escuro que não era escuro por causa do tempo, por causa da chuva ou por causa do cigarro, era um escuro molhado, um escuro que guardava mais lágrimas do que comportaria o oceano atlântico. o velho tinha pés de galinha, sobrancelha escassa, amarela. tinha cavas fundas no rosto, provas de feridas que talvez já tivessem sarado. mas não era por isso que o velho era triste.
o velho tinha a boca seca. tinha regulada a quantidade de água, a quantidade de açúcar, de sal. o velho tinha poucos dentes, todos falsos, e comia com dificuldade. os lábios eram abertos, rachados e feridos, mal se fechavam. a boca do velho já cheirava aos limites do corpo humano. o sorriso, quando havia, era de uma comédia baixa. inocente.
o velho tinha pouco cabelo na cabeça, quase menos que nas orelhas. o crânio à vista, delineado. o pescoço amarelado, uma ou outra mancha vermelha, rastros de um sangue que cansou de circular. mas não era por isso que o velho era triste.
o velho andava com dificuldade, joelhos doloridos, cotovelos doloridos, as ancas pareciam congeladas, imóveis, não mais ativas, sustentadas pelas pernas fracas e finas, pernas que já foram grossas e fortes mas que já não eram mais. o velho precisava de apoio para tomar banho e nunca esfregava as costas.
o velho gostava de futebol, de samba e de cerveja. não jogava mais, não tocava mais, não bebia mais. mas não era por isso que o velho era triste.

os olhos do velho viam as crianças, os jovens, os homens e as mulheres. os olhos do velho já não tinham mais a nostalgia. admiravam, apenas. os olhos do velho viam crianças aprendendo a escrever; crianças chorando por um doce caído ao chão, crianças correndo felizes na rua.
os olhos do velho viam jovens traçando planos para a vida, se apaixonando, imaginando um outro mundo tão possível. os olhos do velho viam jovens tristes e desiludidos, jovens que tiveram o futuro arrancado, jovens saudáveis com caminhos a percorrer.
os olhos do velho viam mulheres bonitas, mulheres feias, mulheres ingratas, mulheres de bom coração. viam mulheres mães, mulheres apaixonadas, trabalhadoras, mulheres promíscuas, mulheres sem esperança.
viam homens de gravata, homens sem gravata, homens procurando lixo, procurando ouro. os olhos do velho viam homens bons e homens ruins, homens com pressa, homens com fome, homens dentro dos carros, homens indo embora.
mas não era por isso que o velho era triste.

o velho tinha a vida compartilhada com sua mulher, uma única mulher, digna do seu melhor e do seu pior. uma mulher companheira que havia cometido erros, que podiam ou não ser grandes o suficiente, mas não importava. o velho tinha a vida compartilhada com essa mulher e envelheceram juntos, na compreensão mútua da tristeza de ver tudo se esvair. mas não era por isso que o velho era triste.

o velho era triste porque havia aprendido a ler, a escrever, a jogar futebol. porque havia perdido um doce e chorado por ele, porque havia feito planos, acreditado neles, feito o possível para que lhe fizessem parte da vida. o velho era triste porque havia se apaixonado, havia sido saudável, havia trilhado um caminho, caído em alguns momentos, sofrido em muitos outros. ele era triste por ter tido mulheres de todos os tipos, de todas as cores, amantes ou não. era triste porque havia procurado por ouro, andado em carros, tido pressa, vontade, coragem.
o velho era triste porque havia vivido e apesar da vida tinha aprendido muitas coisas. aprendido sentimentos, paciências, necessidades, aprendido o que é real e o que não é, o que é preciso e o que não é, o que é possível o que não é. aprendido o que se há de fazer quanto ao outro, aprendido como é mais fácil ou o que surte mais resultado. o velho era triste porque sabia o que haveria de dizer, o que se haveria de fazer. porque sabia o que já fora tentado antes e o que ainda não havia sido. o velho era triste por ter vivido e ter aprendido todas essas coisas, coisas que agora já não eram mais úteis, coisas que só fariam sentido se fossem repassadas para alguém mais vivo do que ele. mas as pessoas vivas não querem ouvir.

aquele velho era triste como mais ninguém.


PROCURA-SE

procuro definição dos conceitos de verdade, amizade e sinceridade, com exemplos práticos e mostras reais. motivo: os meus foram roubados pela vida, procuro novos para substituição. preço a combinar, mas já aviso que estou disposta.

12 junho 2009

o que será que será
que dá dentro da gente e que não devia
que desacata a gente, que é revelia
que é feito uma aguardente que não sacia
que é feito estar doente de uma folia
que nem dez mandamentos vão conciliar
nem todos os ungüentos vão aliviar
nem todos os quebrantos, toda alquimia
que nem todos os santos, será que será
o que não tem governo, nem nunca terá
o que não tem vergonha, nem nunca terá
o que não tem juízo

chico

11 junho 2009

desamada
dolorida
desandada

desastrada
desatenta
descabida

desnutrida
perdida
provada

limitada
afogada
desistida

demotivada
desesperada
desentendida

desalmada
inanimada
incolorida

desinspirada
destraçalhada
desiludida

aproximada
aterrorizada
embrutecida

encorajada
apavorada
escurecida

deslibertada
desconsertada
tão decidida

reavivada
reanimada
desmortecida

impreparada
improvisada
impercebida

em sangue puro
em leite puro
no fim da vida

10 junho 2009

nature has fixed no limits on our hopes

07 junho 2009

se você tocasse a valsa vienense

transbordar

às favas com minimizar danos. caution could but rarely ever helps. a sorte de um amor tranquilo já se chama sorte por algum motivo, palavras que batem em compasso não são nunca dadas de graça. hoje só me resta compaixão a quem se engana: o corpo diz tanto mais que a boca.


pra sentir há de se ter coragem. há de se ter coragem para acordar pela manhã e enfrentar mais um dia sem sentido e sem direção, mas há ainda mais de se ter coragem para sentir. a complitude triste e doce de quem sente há de ser paga de alguma forma, digna ou não, justa ou não, mas quem há de clamar justiça, ao fim? não é preciso mais do que pesar o humano. o que, no fim, se leva daqui, o que no fim é teu por direito, se não só e simplesmente tudo aquilo que sentiu? in the end all you can hope for is the love you felt to equal the pain you've gone through. porque doer também é necessário. esquivar-se é triste. corredio.

ninguém é humano na totalidade porque é preciso sobreviver. já o oposto não é nada mais que triste. querida, não se engane: nem eu nem você temos a natureza amortecida.

e o amor e outros demônios, onde foram parar? o amor nos tempos do cólera? a linha entre a entrega e a desesperança se mostra tênue e o mundo varia entre o furta cor e o preto e branco. ou se precisa acreditar ou se amortece, e pedras hão de vir mas não respeito a indiferença. e agora, josé? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta. e agora?

agora a paciência e a beleza e o sofrimento de que tem a agonia do mundo por todos os dias, que entra pela janela, pelos olhos, o coração, sem vergonha e sem juízo, no tapete atrás da porta. à espera, que transbordar é não caber. e se o que é em excesso há de fazer mal, pois que então eu morra de tanto sentir.

ah, não existe coisa mais triste que ter paz
e se arrepender, e se conformar
e se proteger de um amor a mais









The truth can't hurt you it's just like the dark
It scares you witless
But in time you see things clear and stark

maldito III - A Mãe



Werner Bischof, India. 1951


quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
já foi nascendo com cara de fome
e eu não tinha nem nome prá lhe dar
como fui levando
não sei lhe explicar
fui assim levando
ele a me levar

O Meu Guri, Chico Buarque



A mão, nunca levantei; a mão, o cinto, o fio de luz. Esse intenso que me dói tão fundo foi sempre tão mais forte do que a raiva, do que a decepção, do que a dor. Eu e todas aquelas como eu nos munimos do paradoxo divino de conviver a dor e a alegria, e da desgraça de guardar no peito tanta coisa que ninguém nunca soube nomear.

Do que sou feita não sei dizer. Abro os olhos e respiro a agonia de me saber o mais humilde dos seres humanos; aquele que menos sabe, aquele que menos diz. Entre remédios improvisados e convencimentos de mim a mim mesma, não sei dar nome a metade daquilo que me aperta o peito. A culpa é minha, única responsável: como poderia alguém nomear o que não sente? Ah, que se pudesse pedir, pediria só uma coisa, uma só, longe de mim debulhar-me em pedidos e tristezas, que se nasci mulher nasci pré-fadada a tais tormentas. Pediria e isso sim, a calmaria de um rio translúcido, tão opostamente distinto ao meu coração. Que não me dói quando me bate, não me dóem as palavras amargas e dilacerantes, não me dói a vergonha frente a outros que tem os seus mais bem arrumados e sucedidos, não me dói tanto a mentira, a traição, a indiferença, a violência praticada, o desalento, o desconsolo, o desatino. Ou, se dói, quem sou eu pra reclamar; se me vi acorrentada, algemada, retorcida no momento em que dividi-me em dois, em que arranquei de mim toda a parte boa, a parte pura, a parte digna, e que a tive engolida pelo mundo sem que nem tivesse oferecido, e o mundo estendeu os braços feios sujos e verdes e levou consigo a minha parte melhor e assim largou-me à tortura de assistir aos poucos ao corrompimento de tudo aquilo que era eu e que não é mais. Assim, dei-me à desgraça: a desgraça de não saber doer, de absorver a dor e a amargura em uma esponja vermelha e pulsante, e que de lá vá tudo sabe-de lá para onde, que tenho outras preocupações nessa vida além de choramingar. Tenho ainda de dar de comer, tenho de costurar os cortes, de limpar as carnes, tenho de fazer ninar, de me oferecer o peito todo aberto àquele mesmo montro das mãos sujas quatro vezes por dia, se não mais, tenho ainda de tomar cuidado com os carros, com os vírus, com cadarços; tenho de esquentar a sopa, o colchão e o desespero. Tenho de engolir pregos quando me perguntam porque é que o fiz, que não o tinham me pedido; quando passo a ser responsável por tudo, porque é minha obrigação aguentar; quando sou velha, resmungona, quando não mereço atenção, quando envergonho, diminúo, quando sou feia, dou trabalho, exijo tempo, quando não me importa o peito mas a carteira, quando não valho a pena, simplesmente. E na madrugada seguinte, de olheiras e coração em boca, a esperar passos que me acalmem o peito condenando finalmente a volta saudável de alguém que sou ou fui, quando me levanto e sei que vou a dar de cara, mais uma vez, com um mundo inteiro verde e sujo cujos dentes estão à minha porta e a língua ácida entrando pelo quarto daquilo que já fui, me apego às panelas, às facas, aos isqueiros, àquilo que tiver a mão e sigo, rumo ao mundo, me valendo daquilo que tenho e que não tenho, do peito, das vozes, do estômago, aos gritos e com força, atravancando o caminho de qualquer que seja a ameaça que pode ser que faça doer a parte separada de mim, mesmo essa parte às minhas costas, a me espetar e me puxar pelos cabelos ansiando entregar-se ao monstro, que chama de jeitos tão sedutores mas que eu, por instinto, desconfio e não posse convidar a entrar. E apunhalada pelas costas eu sigo ali, fazendo dos pés raízes fortes que sustentem, à frente, o mundo. Mas por isso não posso reclamar, ora essa, não por isso, porque esse é meu fardo e é a isso que sou. Que se pudesse pedir, pediria uma coisa só, pediria a calmaria de coisas que continuem a ser como são, e que se tiver de doer, que doa; porque é assim que se combate o perigo e é assim que se respira o amor, mesmo escondido, mesmo um amor arredio, que não me vai voltar a mim: sou provedora e não cabe a mim me renegar ao posto. Se sou mãe de filho, sou mãe de todo o resto das coisas que existem, de todas as coisas que existem, porque não há ainda nada nesse mundo que se tenha feito imune pelo que sobrou das partes arrancadas.

04 junho 2009

pequenas coisinhas bonitas de todos os dias

Flávia diz:
você vai pro rio?

' iasamonique diz:
talvez :)

Flávia diz:
que massa
hahaha
vai na lapa
a lapa é muito você

' iasamonique diz:
muito eu?

Flávia diz:
é tipo
tem bar de samba, bar de mpb, bar de jazz, tem de tudo,
e é todo mundo misturado
e a cerveja é sempre muito gelada
e o povo anda bêbado cantando pelas ruas
aaaaaaaah, é lindo

maldito II - O Padre


Martine Franck, France. 1994.

Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus?
Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros,
nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos,
nem os bêbados, nem os difamadores,
nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus.


1 Coríntios 6:9


Mas por que razão gritam tão altos estes sinos? Não parece-me outra coisa que não a insistente zombaria àquilo que reprimo abaixo da batina. A meu mumúrio, que ninguém ouça. Nem mesmo Deus, se for possível.

Hoje aniversariamos, meu Pai; eu e esse meu respirar pesado, aliado fiel desde a primeira missa ministrada em Tua voz. A velhice de nossa comemoração guardo só a Ti e incapaz seria minha garganta de pronunciá-la em alto; esquivo-me de semear qualquer desconfiança quanto a botar em contas os anos de minha dedicação. Sei também que a isso nada tem a ver o Teu descontentamento, e à disposição deixo meus ouvidos para o que julgares necessário para a minha Rendição. Sim, meu Senhor, que me sinto digno de Teu perdão, embora há muito tempo tenha deixado de sentir o gosto do Teu sagrado corpo; o aroma do Teu sagrado sangue. Sim, meu Senhor, que tenho consciência do tamanho do tumor que se alojou em meu peito e do fracasso podre e pagão do qual sofri por ter deixá-lo em carne viva e, nem assim, tê-lo arrancado. De lá para cá, passaram-se mil ave-marias; vinte cinco mil pai-nossos; e não sei contar por quantas vezes senti o coração parar sob o peso branco de Seus olhares. Eis que revirei o Livro outras tantas vezes, como não fazia desde os tempos de seminário — e, meu Pai, por onde devo começar? Uma vida inteira de estudos não adiantou-me de nada quando o pecado me veio bater à porta e profanou em inundância todas as esquinas de minha vida. Que, nas mesmas páginas onde encontrei perdão e aconchego, achei também ameaças e terminâncias. Das mesmas palavras extraí determinações impiedosas e calmarias à correnteza do coração. Ó, meu Pai, que desta última vez deixei o Livro não só com lágrimas, mas com outro sentimento, um sentimento negro no nome mas de uma sinceridade tão intensa que custo a não vê-lo luminoso, uma coisa que me toma, por vezes, quando vejo o quanto somos reprimidos de sermos o que somos, o quanto sofremos na busca eterna de nos tornarmos aquilo que, na verdade, não nascemos pra ser, e que muito raramente o desejamos de verdade; que na verdade nada mais queremos a não ser poder gozar dos frutos que a vida nos oferece de mão amiga, sem que precisemos pedir — mas não podemos, ó Pai, não podemos, porque temos olhos em todos os lugares que nos perseguem e buscam e acorrentam e por vezes dão-nos chibatadas, e mostram-no alguma vivência passada de alguém que não reconhecemos como nossos e nem ao menos entendemos qual relação têm eles, indivíduos longínquos e tão indiscutivelmente egoístas como nós, e por quê temos de levar nossas atitudes com um pesar acumulado pelo qual não fomos nunca responsáveis, mas, se não o fizermos, estamos condenados a uma vida ainda pior do que esta, em outro lugar que não nos permitem nem ao menos conhecer as condições, porque tudo nessa vida é assim, um passo no escuro, e nós que estejamos prontos para tudo e qualquer coisa e nada mais digno do que nos resignarmos e agradecermos, não é, meu Pai, pela oportunidade de atravessar mais um dia de mágoas e tristezas e flechas atiradas contra o peito; somos gratos, sim Senhor, eu e os montes de pobres almas que vêm até a Sua morada pedir perdão por uma regalia a mais, por um desejo qualquer incontrolável que tomou conta de um coração outrora fiel, pela tristeza que nos levou a desejar o mal, pelo amor àquilo a que não se tem direito, pelo desejo carnal, pela revolta com essas grades postas por todos os lados, por ter que agüentarmos calados todo tipo de injúria e infelicidade só pra estarmos na fila daqueles que talvez, algum dia, tenham as almas aquietadas em um reino celeste que ninguém nunca provou existir! * ............ Vês, meu Pai... vês onde me encontro, onde é que me botaste, meu Pai, perdoa-me, por que me fazer passar por tanto? Eu, que sempre estive aqui a seu lado, agora derramando sobre ti tanta heresia, mesmo sabendo que por mais inquieto que esteja meu coração é Tu que sabes dos valores e da fé e que é nela que preciso depositar todo o meu ser. Quanta vergonha, meu Pai, quanta vergonha, ao sabão com toda a minha boca e toda a minha língua, que Teus sagrados ouvidos não hão de sofrer novamente a mesma imprudência. Eu, que aniversario hoje uma carreira toda de dedicação, ó, Senhor, perdoai, perdoai. Haverás de punir-me, não é? Já o prevejo e aqui me comprometo a jamais profanar uma só palavra a pedir alívio do que julgarás ser meu castigo. Aceitarei, Senhor, de comum acordo, por uma redenção que espero conquistar novamente, assim que purificar meu coração. Ó, Pai, que já o sinto purificando... ó, Pai, como é grande o Teu poder, já sinto Sua presença a acalmar-me a inquietude. Perdoai, Pai. Perdoai, que eu também hei de garantir uma nuvem confortável no reino dos céus.

03 junho 2009

“Ele chorou um pouco. Era um belo homem, com barba por fazer e abatidíssimo. Via-se que havia fracassado. Como todos nós. Ele me perguntou se podia ler para mim um poema. Eu disse que queria ouvir. Ele abriu uma sacola, tirou de dentro um caderno grosso, pôs-se a rir, ao abrir as folhas. Então leu o poema. Era simplesmente uma beleza. Misturava palavrões com as maiores delicadezas. Oh Cláudio – tinha eu vontade de gritar – nós todos somos fracassados, nós todos vamos morrer um dia! Quem? Mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira”.


clarice

01 junho 2009

perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias



clarice
 

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