31 julho 2009

acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

paulo mendes campos

26 julho 2009

sopro

aprendi com a primavera
a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira
cecília meirelles



hoje tenho vontades que cabem em cafés com creme e conversas ao léu. prometo só falar das chuvas, do curíntia e botar a culpa na má distribuição de renda.
às vezes,
e sem remorsos,
é hora de calar.

era um tempo em que choviam ratos e eles nada mais podiam fazer além de tecer amargos pormenores. havia cinco dias inteiros da mesma luz, da mesma cama e da rotineira discussão sobre a inutilidade do amor. tinham opiniões distintas, quase opostas - mas nenhuma forte o suficiente que chegasse a causar algum desgaste. os dois viam o amor em água morna, cada qual à sua maneira. ele sabia do amor fato natural e inevitável, mera coincidência que a vida acostumou-se a reservar, não importando protagonistas ou coadjuvantes. seria mais uma ordem de chegada ou qualquer coisa assim. ela via do amor a grande sacada da vida, a razão pra todas as outras coisas, mas de uma forma muito menos ardente do que se espera de um último romântico. dizia do amor a única coisa a render boas histórias mas o pensava com a mesma frieza com que pensava a lista do mercado. ambos já haviam lido e ouvido dizer de tantas histórias e tantos amores, mas, quase infantis, não sabiam lidar com o que não se pode tocar. ela mentia ver o amor nos olhos dele. ele pensava ser muito cedo, o amor é uma palavra assim tão forte. ratos continuavam caindo mundo afora, e mais vários dias da mesma luz, da mesma cama e dos diálogos repetidos à exaustão, nos desvios dos silêncios que perturbam. o amor não tinha nada a ver com aquilo.

24 julho 2009

Simples Estorinhas (ou narciso III)

já tentaram, disseram, explicaram. já me botaram sentadinha no chão de pernas cruzadas pra que eu ouvisse com atenção. de nada adiantou,

não consigo pensar nada além de triste sobre quem não vê, na vida inteira, em todo o amor e em toda a luta, os maiores e mais significativos argumentos pra roteiros documentais da existência humana. sobre quem diz de márquez, shakespeare, goethe, hemingway, "simples estorinhas de amor", sem perceber que o pensamento sadio cuja mudança nasceu dos romances escritos é tanto real quanto duradouro.




o beijo do Hotel de Ville, Paris, 1950
Robert Doisneau

22 julho 2009


"és uma das minhas referências de como transitar por esse mundo sem pertencer a ele"

o dia vai morrer aberto em mim
manoel de barros

21 julho 2009

pra viver de bem

Juca foi autuado em flagrante
como meliante
pois sambava bem diante
da janela de Maria
bem no meio da alegria
a noite virou dia
o seu luar de prata
virou chuva fria
a sua serenata
não acordou Maria

Juca ficou desapontado
declarou ao delegado
não saber se amor é crime
ou se samba é pecado
em legítima defesa
batucou assim na mesa
o delegado é bamba
na delegacia
mas nunca fez samba
nunca viu Maria

chico buarque

20 julho 2009

assisto ao tempo nas pétala das gérberas. empalideceram dois tons durante a última semana - foi uma semana cheia de doces ausências. a cidade mudara de cinza para suaves tons róseas. não pude assistir mas não lamento, apenas sorvo a harmonia das passagens inexatas. dias atrás assisti a uma peça que dizia que a maior paz é aquela conquistada dentro do próprio furacão, penso então que a minha busca é a estabilidade no movimento e que não caberia em mim a calmaria de marés inertes. poucas vezes se passaram tantas coisas tão opostas pela minha mente como ontem, ao amanhecer, e tive certeza de que caminhava pela minha própria órbita, independente dos cruzamentos possíveis a ela. ela estaria sempre ali, e eu sobre ela, na estética da ordem das coisas que devem ser. acredito que o mais perdido dos homens possui significado em sua existência, quer tente descobrir ou não. que o vento não tem nada a ver com isso, que há os nós desatados e nenhuma corrente ao chão, que existe a senhoria de si desde o copo até a morte, não há quem me faça crer, ela disse uma vez que há o cosmo cuja essência cobre todas as dimensões e acreditei sem perguntar. a tarde desce devagar e parece ser feita da mesma matéria de que consiste a saudade, e nada mais pesa a não ser o imenso peso do hoje, fatal e inevitável, e real como quase nada mais.

05 julho 2009





sentada, olhou e disse que assistia à minha euforia como quem assiste a uma formiga que tenta levar uma folha para casa: sem anseios, com minúcia

com o vento, me deixou:
"saí
fui buscar teu tempo
em mim"



me faço eu própria em água, e em mim mergulho. penso no inteiro que é ser água e então estou em casa, confortável e calma, na tranquilidade que breve sobrepõe a tormenta. exercito os pensamentos na delícia de me conhecer, mas ainda doce e breve não há obrigação em me encontrar. hoje não sou inteira, hoje quero ser múltipla, diluída e camuflada no mar em que passeio. entre eu e a água, nada: o esforço da mudez e a palidez dos desencontros. mostraste-me ontem uma imagem que me fez sentir como são leves as coisas, e como escorrem, embora menos do que eu. quis dizer algo que soasse colorido para preencher teus espaços e lembrei que nenhuma cor há de preencher se for sozinha. acontece que hoje não há cor nenhuma, o mundo é translúcido e posso ver pelas entranhas de toda e qualquer coisa, e o desejo de conhecer me põe tão ocupada em mim que quando vejo é escuro e o sol já se pôs. um dia longo, um dos dias de uma sequência finita e doce, que deve preceder algo bom, posso sentir - enquanto isso calo, calo e vou, apenas, sem respirar. para conhecer meu limite nessas águas, para fazer-me toda fluir, para tornar-me outra coisa, só por hoje. e então, há pequenos ocos de luz que passeiam ao meu redor, pequenos leves sinais delineados na superfície. sob meus pés, a imensidão.

, e pegou de mim o que eu tinha de melhor. o que criei de mais bonito. pegou minhas tardes de sol, minhas músicas favoritas, meus doces sabores. meu respirar. pegou a parte mais doce que havia em mim. pegou minha vontade, a minha coragem, o meu peito em brasa. meus olhos molhados. o meu perdão.
pegou o meu sossego, meu medo do mundo, minhas lágrimas claras. os pequenos chocolates, a janela do carro, a cortina aberta, pegou minha barraca, minha cobertura, o meu filtro amarelo, o meu pijama, o meu café fresco. pegou de mim meu arrependimento. minha guerra e minha paz. me arrancou do morango o vermelho, da chuva a brisa, da tarde a cor. minhas noites dormidas, a minha voz grossa, minha crença no agora, a minha inocência, os lábios corados. a reciprocidade. a luz dos olhos. me arrancou as belezas, meu samba da vida, minha carne inteira, todo o meu pulsar.

, da maldade que és, por vingança, por medo; impulso; podridão. condenou meus amigos às trevas, meu corpo à luxúria, meu eu ao desassossego. fez
de mim pouco palco, sadia, serena, usou da inocência, da falta de assunto, de frivolidades, usou do vermelho, da flor que coubesse, do sangue, da raça, da luta de galos, dos dias de ócio, da imundice, do feio, do sujo, do podre do velho do escasso, do ardido, do ácido, do fundo, do verde dos musgos, esgotos, subúrbios, cuspiu na minha cara, me fez limpar, chorar, doer, rasgar

, sendo eu a culpada, megera, maculada, me jogando na cara, na rua, na praça, cobrando perdões, cobrando verdades, e eu que rompia, que ardia no mundo, e eu que insistia, no escuro, no medo, no que sobrou de honesto, sincero, ilusório

, ainda que arda, que mate, que fique, ainda que parta e apodreça ainda mais, que cheire, que vaze. ainda que doa, e há de doer, que chore, que queime. apesar dos teus olhos, da tua pele invisível, teus malabarismos, mentiras, promessas. apesar dos chamados, dos ecos vazios, das inverdades, dos falsos versos, de cada uma das palavras que usastes tão mal, tão impura que és, que soas, que mostras. ainda que sangre, que caia em pedaços, ainda metade, incompleta, inundada, mesmo que não acredite, que odeie, que marque. apesar do pior, do desejo terrível, do inevitável, do ódio guardado, apesar da vontade invingada, do grito contido, do rombo no peito


02 julho 2009

tua lâmina flácida saiu com furor mas sem certezas e acabou por destruir as nuvens que suspenso te mantinham
(não penses jamais que tudo virou pedra, porque se tem uma regra que meu coração sabe de cor é que é preciso sair por aí amando todo mundo)
novembro 2007

noite

não alimento nenhum sigilo, dou cria a obviedades cruas na luxúria das rotações. de onde estou vejo quatro paredes e me disponho em confronto a todas elas, mórbida e ansiosa. pela manhã mal podia respirar: a ameaça de tantos mais segundos. permanência. por um instante sinto em carne a fugacidade das essências e as vejo percorrendo membranas lúcidas do passado. as horas são leves mas trazem coisas pesadas - e agora estou à beira, o corpo treme, os olhos fixos, o silêncio perturbador do reconhecimento.

noite

vestida em coragem eu vou, deixando marcas de sangue e água por onde passo. transbordar: não há a quarta parede e o público interpreta os olhares que despencam sobre ele sem qualquer preocupação. noites nuas sob um céu sem fim, confissões em sussurros e o desejo intrínseco da carne surgem das estampas floridas e seguem dançando durante toda a noite e meu corpo treme sem controle, obedecendo mais às urgências da alma. inédito, o perdão não é invocado e ficamos a assisir a turbulência das reações das chamas de uma honestidade que é queimada sem arrependimentos, e cuja dor é sufocada pelos falsos ideais de qualquer coisa dolorida e infiel. penso-o como é pra mim mas escorrego pela translucidez de um carinho empoeirado. mais que espelho são seus olhos, e para eles me ponho rasgada e ácida. ser de extremos e não prometer nada nunca além do meu pior.

noite

o calor de um sol noturno faísca meus desejos e volto à outra madrugada, quando via-o dormir e meu corpo não pôde outra coisa que não acordá-lo em gota. rasgar a carne e dá-la inteira e insensata, passada a ferro, despida dos ideais imaculados, porque só assim seria vã suficiente. pra sentir-te inteiro. pra conhecer de ti a única faceta verdadeira de teus múltiplos lados dóceis e infantis. pra dar-me sem raciocínio à similitude e ao doer. pra colocar em torno de nós uma manta que nos fizesse cúmplices, sadios em nós mesmos, confusos entre braços e pernas e vontades. pra se aprender do incontrolável e do inocente. pra nos dar o único rascunho de sincero que nos foi possível em tão pouco tempo.

noite

mantenho-me em mim e não me permito a invasões. passeiam por meu corpo as dores sempre bem vindas e assisto em busca de concretudes. não há nada em volta. a ignorância vêm de mãos dadas com a perda e o desencantamento, me ponho quieta e escrevo. para ninguém.

noite

da janela vejo o nascer, o estar e o pôr do sol. ignoro o momento da perda e adio a decisão já tomada, sabendo da maldade da esperança e mesmo assim à mercê de toda ela. são poucas luzes coloridas e o som dos aviões me invadem como se fosse eu própria levitar agora mesmo. se na esquina no bosque na rua no topo do mundo te encontrar, vou dizer meu amor me deixa meu amor, que tudo ruiu foi por tão pouco, que deixei invadir penetrar macular me perdoa meu amor que não fui boa nem suficiente nem fragmentada, meu amor se te gritei foi porque não cabia e só, se rasguei ou arrastei o mundo nas costas me perdoa, se deixei cair pelo caminho se pisei em cima e se por acaso ele rolou meu amor, me perdoa se não pude permanecer ao fogão ou limpar melhor a tua casa ou arrumar melhor a tua cama ou se não acertei no livro na música no tempero, meu amor, me perdoa se não coube nos teus pequenos sonhos nos teus pequenos ideais, meu bem, me perdoa por não ter dançadoa tua música fechado as janelas ou aceitado tantas palavras que cheiravam mal meu amor, me perdoa, por ser assim inteira dura por dentro consistente e romântica e me perdoa meu amor por ter acreditado na sinceridade da carne do desejo da coragem, meu bem, me perdoa eu vou embora eu não volto mais eu não passo mais aqui eu vou embora meu amor

noite

uma vez era manhã e eu disse "quando eu me apaixonei", sabendo que essa pequena frase ia fazer inundar uma ilha do outro lado do mundo. deviam ser passarinhos lá fora, havia também uma cidade vazia e uma chuva fina acontecendo, eu não via mas podia sentir. disse assim para ele, em discurso direto mas livre de mim mesma, como quem assume uma coisa em terceira pessoa. ele abriu os olhos e eram olhos pesados doentios, e seus lábios tremiam com medo de que eu tivesse dito humilhada, mas eu previ e disse que não. disse "quando eu me apaixonei, eu sabia", disse que sabia mas não quis dizer que nunca acreditei. os olhos continuaram pesados e doentios e eu fui até o espelho, na esperança de descobrir quem foi que havia dito aquilo.


aquela era a época dos anúncios de fim do mundo, então era inevitável que nos passasse pela cabeça os pensamentos melancólicos que sempre acompanham o fim - qualquer que seja ele, é da natureza do fim ser triste e melancólico - e até o pôr do sol, lá estávamos, ao pé da árvore, enumerando as pequenas coisas que tínhamos vivido.
era época dos anúncios de fim de mundo, e nos perguntávamos se haveria mesmo céu e inferno, julgamento final, todas essas ameaças que nos fazem viver com medo. sempre achei que nunca haveria nada disso, mas era inevitável também que todas as pessoas do convívio nos visitassem em lembrança, pra que pudéssemos nós, no egoísmo da sede de sabedoria, julgá-las previamente, mandando-as pra onde achávamos que deveriam ir. as minhas, na maioria, acabam no limbo, como eu.
então houve uns minutos de silêncio e passei a acompanhar, de memória, as mudanças das pessoas com as quais eu convivia, desde que as conhecia e até aquele momento. é preciso 'cultivar algumas pessoas para que se isole toda a outra humanidade'.
estávamos fatalistas como deveriam estar dois seres humanos à espera do apocalipse. por um momento desejei não ter cultivado pessoa alguma, logo não sofreria com o fim de mundo ou os destinos opostos que pudéssemos ter, mas então pensei que coisa besta seria privar a vida por medo das coisas tristes que podem haver. lembro de ter pensado ainda que, se pudesse, colocaria sentados ao pé da mesma árvore todas as pessoas incrédulas que conheço, todas as medrosas, as apáticas, todas as pessoas tristes, as desacreditadas, as egoístas, todas aquelas viciadas em recolher argumentos pra justificar o medo da entrega, e ficaria com elas até que o mundo acabasse, reunindo sambinhas fotografias histórias e versos, no esforço contínuo de convencê-las de que as coisas valem a pena, veja só, é só você acreditar, a tristeza é inevitável de qualquer forma então é preciso compensar com alegria.
o coração bateu tão forte com a idéia que precisei compartilhar. ouvi que não se deve convencer ninguém de nada, que as pessoas são diferentes e que cada uma vive à sua maneira.
esperamos até o pôr do sol. o mundo não acabou.

01 julho 2009

a tormenta a calmaria a tormenta a calmaria a tormenta a calmaria
a tormenta a tormenta a tormenta a tormenta a tormenta


aos poucos, bossa nova




 

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