15 dezembro 2009

Onde andará Nicanor?
Tinha mãos de jardineiro
Quando tratava de amor
Há tanta moça na espera
Suas gentis primaveras
Um desperdício de flor
Onde andará Nicanor?
Tinha amor pro porto inteiro
Um peito de remador
Ah, quem me dera as morenas
Pra consolar suas penas
Para abrandar seucalor

Olha elas sempre aflitas
Bata o vento ou caia chuva
Cada uma mais bonita
E mais viúva
Todas elas fazem ninho
Da saudade e da virtude
Mas carinho
Queira Deus que Deus ajude

Onde andará Nicanor?
Tinha nó de marinheiro
Quando amarrava um amor
Mas há recantos guardados
Nos sete mares rasgados
Sete pecados tão bons
Onde andará Nicanor?

06 dezembro 2009



para que se leia o tratado do desespero e da beatitude é preciso que se esteja

1) desesperado
2) adepto ao celibato
3) neutro, cristão e que mantenha em casa orquídeas de pétalas rosadas
4) na quinta fase ou dando de comer aos paralelepípedos da rua da mão inglesa
5) são e sórdido


11 novembro 2009

para te escrever eu antes me perfumo toda

clarice



volto quando houver trégua da vida que vem me afogando em fúria e alegria, dia após dia, pelas noites quentes de novembro, até sempre. felicidade bate à porta, chico disse pecado se eu não atender

24 outubro 2009

a poesia é proibida para os jornalistas

..

(...)
Não me leias se buscas
flamante novidade
ou sopro de Camões.
Aquilo que revelo
e o mais que segue oculto
em vítreos alçapões
são notícias humanas,
simples estar-no-mundo,
e brincos de palavra,
um não-estar-estando,
mas de tal jeito urdidos
o jogo e a confissão
que nem distingo eu mesmo
o vivido e o inventado.
(...)

drummond

22 outubro 2009

amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


drummond

o mar batia em meu peito,
não batia no cais


drummond

18 outubro 2009

usually when things has gone this far
people tend to disappear


qualquer outro sono seria supérfluo, era uma daquelas noites frias lá fora e quentes, quentes, incômodas. havia um coração correndo em fuga e pensamentos feito flechas, fazendo sombra entre as cortinas. como quando você fecha os olhos só pra dar de sentir de novo o cheiro das memórias - memórias que são dores, ardores, consolos. a noite, cúmplice, não diz nada até que o dia chegue. se despede em sussurro e deixa ficar uma ou duas emoções sem nome, pra que aguentemos sem morrer de saudade até o próximo anoitecer. que sabemos que virá. mas que mata aos poucos, segundo a segundo, de saudade, de paixão e de lamento.

15 outubro 2009

Um nojo, vez em quando me dá asco - nojo é culpa, nojo é moral - você se sente sórdido, baby?

caio, de novo.

29 setembro 2009

Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração

caio f.

28 setembro 2009

você corre.
escuro e escorregadio, você corre. carrega contigo a força da pressa, da vontade. o ideal da conquista. os objetivos marcados em cada passo, em cada movimento. você dança. delicadas elevações, preparações corpóreas, o treinamento insistente e cansativo das sequências preparadas com cuidado e sem desculpas. você joga. é um jogo mal amado de exaustão, coragem e equilíbrio. o medo não existe. o mundo não existe, está todo condensado em você. uma curva errada e tudo se perde. a beleza intrínseca do limite material, do extremo, a superação estampada sob holofotes curvados e luminescentes, coloridos, holofotes híbridos na surpresa e na negação. nada está no lugar, mas tudo está sob controle. o controle, você.
você pisca.
entre um movimento e outro estão seus olhos. limpos. como em todos os olhos, um mar de profundidades, serenas e delicadas, quase nunca perceptíveis. você corre, mas não seus olhos. acompanham simplesmente, com a sutilidade indigna de um gato. ao primeiro olhar, completude. ao segundo, concentração. ao terceiro, desespero.
você pisca.
o desespero instantâneo, quase sádico, da percepção. você pulsa. mantém os movimentos equacionados, os passos no lugar, um automatismo do corpo experiente. enquanto isso, o grito. o corpo experiente e insatisfeito como todos os outros corpos. o corpo que obedece da forma única de obedecer, mantendo sutil o grito de rebeldia que não será ouvido senão por outro corpo. um outro corpo que, embora estático, pulse. que corpos são como bocas: obedientes mas mestres na arte da dissimulação, perigos constantes e ameaçadores ao controle imaginado. o corpo grita, sem controle. já não se ouvem passos, só o ofegar, cúmplice do coração. ao segundo olhar, movimentos não tão objetivos. estremecidos. curvas propositais, esculpidas inteiras em impulso, mas jamais despidas da beleza. os olhos são os mesmos. nada está no lugar, mas tudo está sob controle. o controle, corpo.
você obedece.

24 setembro 2009

fazendo amor

"Nietzsche estava certo: 'De manhã cedo, quando o dia nasce, quando tudo está nascendo - ler um livro é simplesmente algo depravado'. É o que sinto ao andar pela manhã pelos maravilhosos caminhos da fazenda Santa Elisa, do Instituto Agronômico de Campinas. Procuro esquecer-me de tudo que li nos livros. É preciso que a cabeça esteja vazia de pensamentos para que os olhos possam ver. Aprendi isso lendo Alberto Caeiro, especialista inigualável na difícil arte de ver. Dizia ele que 'pensar é estar doente dos olhos'.

Mas meus esforços são frustrados. As coisas que vejo são como o beijo do príncipe: elas vão acordando os poemas que aprendi de cor e que agora estão adormecidos na minha memória. Assim, ao não pensar da visão, une-se o não-pensar da poesia. E penso que o meu mundo seria muito pobre se em mim não estivessem os livros que li e amei. Pois, se não sabem, somente as coisas amadas são guardadas na memória poética, lugar da beleza.

'Aquilo que a memória amou fica eterno', tal como disse Adélia Prado, amiga querida. Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo. Há os livros que moram na cabeça e vão se desgastando com o tempo. Esses, eu deixo em casa. Mas há os livros que moram no corpo. Esses são eternamente jovens. Como no amor, uma vez não chega. De novo, de novo, de novo...

(...)

Quando minha filha estava sendo introduzida na literatura, o professor lhe deu como dever de casa ler e fichar um livro chatíssimo. Sofrimento dos adolescentes, sofrimento para os pais. A pura visão do livro provocava uma preguiça imensa, aquela preguiça que Roland Barthes declarou ser essencial à experiência escolar.

Escrevi uma carta delicada ao professor, lembrando-lhe que Jorge Luis Borges havia declarado que não havia razão para ler um livro que não dá prazer quando há milhares de livros que dão prazer. Sugeri-lhe começar por algo mais próximo da condição emotiva dos jovens. Ele me respondeu com o discurso de esquerda, que sempre teve medo do prazer: "O meu objetivo é produzir a consciência crítica..."

Quando eu li isso, percebi que não havia esperança. O professor não sabia o essencial. Não sabia que literatura não é pra produzir consciência crítica. O escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer. Para fazer amor. Escrever e ler são formas de fazer amor. É por isso que os amores pobres em literatura ou são de vida curta, ou são de vida longa e tediosa... Parodiando as palavras de Jesus, 'nem só de beijos e transas viverá o amor, mas de toda palavra que sai das mãos dos escritores...'."

Rubem Alves

30 agosto 2009

eu bato o portão sem fazer alarde
eu levo a carteira de identidade
uma saideira, muita saudade
e a leve impressão de que já vou tarde

chico

20 agosto 2009

quando andré falou da fugacidade das coisas eu entendi, porque não havia uma só coisa que andré dissesse que eu não sentisse em mim mesma. nunca fez parte de mim querer falar de andré, parecia um pedaço de mundo maculado, uma grande mancha vermelha em cima de todas as coisas que falávamos porque sempre nos vinha à memória aquele convite que me fez quando mal nos conhecíamos. decidimos que seria bom sair pra conversar, nós e as cervejas, haveríamos de nos preocupar com elas, seriam a desculpa eterna de todas as coisas que aconteceram aquela vez, os vários copos enchidos em sequência e engolidos a seco porque estávamos puros e inocentes em meio a um grande e enganoso desconhecido. como se o tempo tivesse sido cortado em dois e a próxima cena descrevesse o quarto de andré, um silêncio que não nos incomodava e as botas que eu não quis tirar antes de me deitar e cair no sono. não sei se andré dormiu, não sei nem ao menos por quanto tempo estive ali, frágil e entregue à delícia de um sonho embriagado, mas eram seis e alguma coisa quando um relógio digital iluminou meu rosto dizendo: "é hora de ir embora". assim como de alguma forma eu estava lá, naquela cama desconhecida, num repente estávamos nos despedindo, tão inocente como "obrigada pela companhia". e assim por cinco anos me mantive imaginando a fugacidade das coisas pra só hoje perceber como é tudo tão perecível - um chocolate meio amargo, um entardecer de cor lilás, uma arranjo de flores, o carinho de um amigo. as coisas pertencem todas a uma sintonia e é preciso acompanhá-la, abandonar os perecíveis quando esses começam a malcheirar. o engano todo, todo o desespero reside no esforço de tentar (anotemos, sempre em vão) manter vivo aquilo que já adoeceu. aprendemos nos filmes livros músicas que das listagens das coisas que nos transpassam há de resultar um saldo e aquilo que resulta positivo é aquilo a ser guardado na lembrança das coisas que morreram - aquele passado que nunca existiu. se andré me perguntasse hoje (não perguntaria, andré é alguém eternamente ressentido, por vezes comigo, por vezes com o mundo) de quais bebidas não provaria, eu responderia apenas que provaria todas novamente porque as mais doces haveria sempre de querer provar, e as mais ácidas - bom, as mais ácidas - elas me arderiam o paladar com o intuito único de provar-me viva. hoje chove uma chuva escura, mas eu pulso. estou viva. curioso que sobre andré quero sempre falar da fugacidade. vai ver é porque andré é exceção à regra: andré permaneceu.


nesses dias em que chove por dentro, me distraio em botar lado a lado os dois pés na borda da janela. é um bom exercício quando se está no limite, as paisagens verticais jamais me foram tão distintas (horas passam sem que eu consiga discernir qual é o lado que a chuva molhou). disciplinada, não desvio o olhar: retinas aguadas fixas entre um ponto e outro, poderia dizer que representariam vantagens ou desvantagens, ou até mesmo estratégias, pontos de vista, mas não: minhas paisagens são nada mais que paisagens, desvios de atenção, e nada me dizem - trazem apenas, com a doçura pueril de quem presenteia rosas brancas, a distração de minhas horas-mortas - como disse nada mais que paisagens, assim como eu que sou nada mais do que eu mesma.
quando me canso, dobro feito equilibrista e alcanço as palavras que priscilla me deixou muito tempo atrás, como se previsse ou qualquer coisa assim, priscilla sempre teve tantas coisas que eu nunca soube explicar. me apóio no duelo entre a janela e a cidade (já não me sinto atraída, canso fácil. por agora e de retinas fatigadas vejo apenas priscilla, seus cabelos curtos, sua alma clara, o rosto iluminado sem razão, priscilla nem ao menos era bonita, tinha assim umas olheiras roxas fundas e não usava nem um mínimo de pó-de-arroz, nem aquele tantinho que as meninas passam nas bonecas pra que essas lhes pareçam menos mortas e aterrorizantes, priscilla era dona de uns lábios carnudos que de tão grandes se rachavam inteiros e por vezes priscilla sangrava e era como se ela tivesse assim tanto sangue correndo, um sangue espesso, que não cabia nela - ela que era tão miúda e pequenina - e precisava jorrar pra fora alguma coisa daquele sangue, e devia ser isso mesmo porque lembrando agora priscilla sempre passava a impressão de estar sufocada, embora essa impressão acabasse invariavelmente perdida no encanto dos olhos tão doces e negros de priscilla) e passo a recitar em voz alta os versos favoritos que sublinhei em tom lilás: "saí; fui segurar o vento pelas pontas", ou "hoje quando acordei tomei um chá de alecrim sentada na varanda folheando algum livro meu e fui ficando assim meio idílica e então prendi os cabelos de um jeito quase épico e fechei os olhos para sentir melhor aquela completa ausência de mim", ou ainda aqueles que requeriam um pouco de conhecimento de priscilla (conhecimento que nunca tive, priscilla e eu nunca fomos apresentadas), como esse: "por enquanto, clarice e eu não nos amamos".
dependurada na janela, na ponta dos pés entre a haste de metal e os empoeirados azulejos do tanque de lavar, leio priscilla enquanto sei que indisponho um ou outro nome da estante de livros. porque éramos nós apenas (havia até um pacto selando fidelidade para a orgia à qual havíamo-nos entregues eu, vinicius, drummond, baudelaire e clarice), como nas cinco pontas de uma estrela, e priscilla havia invadido assim sem mais nem menos e agora eu via a desordem e seria por certo deselegante que qualquer outro pudesse ver-me agora, entre a janela e a cidade, suspensa apenas por aqueles grandes olhos doces. eu nada poderia explicar: era o instante de ser fiel apenas a meus pés.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.


caio

17 agosto 2009

os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


c.d.a.

11 agosto 2009


0300

quanto barulho na noite dos insatisfeitos. os carr
os acelerados, os aviões, os pequenos estralos vindos de fora, a prova audível das coisas que se movimentam no contraste cínico e incolor entre a euforia obediente e qualquer coisa que não sejas tu mesmo. pensamento inevitável a procura por aquilo que falta, e o saldo bruto do que já passou sussurrando leve que contra o algo de ausente não há de haver guerra, mesmo embora o argumento não dure mais de três segundos.


0314

parece coerente ao ás a capacidade de ganhar ou de perder de todas as demais cartas do baralho


0457

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",
"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",


0728

uma balança deve ser suficiente para a mesura de todo tipo de índices e, ainda que nada mais que isso, tornar óbvias as diferenças: números (datas valores quantidades casas decimais) pesam muito mais que uma ou mil ausências [
ausência: subst f. [aw'zẽsjɐ]
exiguidade, falta, escassez, pouquidade]

1153

em toda casa onde há janelas de vidro há agora (ou ainda antes) uma parte trincada sem que pedras viessem para trincar. ou galhos ou pequenos acidentes envolvendo pés de cabra. não caberia ao vidro transparecer tão fielmente a vida que tenta entrar; ou ainda há a parte para que não se esqueça dele [o vidro] a presença.

1410

regras de civilidade: oi, olá, boa tarde, como vai, como está seu dia, como andam as crianças, e aquele assunto, resolveu?, e aí, hoje há sol, precisamos combinar alguma coisa, aparece lá em casa, traga mulher e filhos.

2042

há algo de perecível nos pratos de qualquer balança e se permite dizer parece ser o algo errado

2337

a possibilidade de tornar, em acréscimo às funções básicas primordiais (comer sozinho escovar os dentes discernir o lado certo da camiseta amarrar os cadarços se eu tinha três laranjas e joãozinho comeu duas quantas me sobrou?), fazer nota de todas as palavras lidas e frases ouvidas ao longo de um dia inteiro e, junto ao copo de leite que traz o sono dissolvido, contabilizar e agregar cada núcleo em, no máximo, três categorias a serem definidas particular e impulsivamente. ao fim de cinquenta anos, dissertar sobre o porquê do segundo advérbio ser lido, quase sempre, com sentidos de revés.

06 agosto 2009


"E eu ainda sou bem moça pra tanta tristeza ...
E deixemos de coisa, cuidemos da vida
Senão chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moça
Sem ter visto a vida"

31 julho 2009

acorrentados


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

paulo mendes campos

26 julho 2009

sopro

aprendi com a primavera
a deixar-me cortar
e voltar sempre inteira
cecília meirelles



hoje tenho vontades que cabem em cafés com creme e conversas ao léu. prometo só falar das chuvas, do curíntia e botar a culpa na má distribuição de renda.
às vezes,
e sem remorsos,
é hora de calar.

era um tempo em que choviam ratos e eles nada mais podiam fazer além de tecer amargos pormenores. havia cinco dias inteiros da mesma luz, da mesma cama e da rotineira discussão sobre a inutilidade do amor. tinham opiniões distintas, quase opostas - mas nenhuma forte o suficiente que chegasse a causar algum desgaste. os dois viam o amor em água morna, cada qual à sua maneira. ele sabia do amor fato natural e inevitável, mera coincidência que a vida acostumou-se a reservar, não importando protagonistas ou coadjuvantes. seria mais uma ordem de chegada ou qualquer coisa assim. ela via do amor a grande sacada da vida, a razão pra todas as outras coisas, mas de uma forma muito menos ardente do que se espera de um último romântico. dizia do amor a única coisa a render boas histórias mas o pensava com a mesma frieza com que pensava a lista do mercado. ambos já haviam lido e ouvido dizer de tantas histórias e tantos amores, mas, quase infantis, não sabiam lidar com o que não se pode tocar. ela mentia ver o amor nos olhos dele. ele pensava ser muito cedo, o amor é uma palavra assim tão forte. ratos continuavam caindo mundo afora, e mais vários dias da mesma luz, da mesma cama e dos diálogos repetidos à exaustão, nos desvios dos silêncios que perturbam. o amor não tinha nada a ver com aquilo.

24 julho 2009

Simples Estorinhas (ou narciso III)

já tentaram, disseram, explicaram. já me botaram sentadinha no chão de pernas cruzadas pra que eu ouvisse com atenção. de nada adiantou,

não consigo pensar nada além de triste sobre quem não vê, na vida inteira, em todo o amor e em toda a luta, os maiores e mais significativos argumentos pra roteiros documentais da existência humana. sobre quem diz de márquez, shakespeare, goethe, hemingway, "simples estorinhas de amor", sem perceber que o pensamento sadio cuja mudança nasceu dos romances escritos é tanto real quanto duradouro.




o beijo do Hotel de Ville, Paris, 1950
Robert Doisneau

22 julho 2009


"és uma das minhas referências de como transitar por esse mundo sem pertencer a ele"

o dia vai morrer aberto em mim
manoel de barros

21 julho 2009

pra viver de bem

Juca foi autuado em flagrante
como meliante
pois sambava bem diante
da janela de Maria
bem no meio da alegria
a noite virou dia
o seu luar de prata
virou chuva fria
a sua serenata
não acordou Maria

Juca ficou desapontado
declarou ao delegado
não saber se amor é crime
ou se samba é pecado
em legítima defesa
batucou assim na mesa
o delegado é bamba
na delegacia
mas nunca fez samba
nunca viu Maria

chico buarque

20 julho 2009

assisto ao tempo nas pétala das gérberas. empalideceram dois tons durante a última semana - foi uma semana cheia de doces ausências. a cidade mudara de cinza para suaves tons róseas. não pude assistir mas não lamento, apenas sorvo a harmonia das passagens inexatas. dias atrás assisti a uma peça que dizia que a maior paz é aquela conquistada dentro do próprio furacão, penso então que a minha busca é a estabilidade no movimento e que não caberia em mim a calmaria de marés inertes. poucas vezes se passaram tantas coisas tão opostas pela minha mente como ontem, ao amanhecer, e tive certeza de que caminhava pela minha própria órbita, independente dos cruzamentos possíveis a ela. ela estaria sempre ali, e eu sobre ela, na estética da ordem das coisas que devem ser. acredito que o mais perdido dos homens possui significado em sua existência, quer tente descobrir ou não. que o vento não tem nada a ver com isso, que há os nós desatados e nenhuma corrente ao chão, que existe a senhoria de si desde o copo até a morte, não há quem me faça crer, ela disse uma vez que há o cosmo cuja essência cobre todas as dimensões e acreditei sem perguntar. a tarde desce devagar e parece ser feita da mesma matéria de que consiste a saudade, e nada mais pesa a não ser o imenso peso do hoje, fatal e inevitável, e real como quase nada mais.

05 julho 2009





sentada, olhou e disse que assistia à minha euforia como quem assiste a uma formiga que tenta levar uma folha para casa: sem anseios, com minúcia

com o vento, me deixou:
"saí
fui buscar teu tempo
em mim"



me faço eu própria em água, e em mim mergulho. penso no inteiro que é ser água e então estou em casa, confortável e calma, na tranquilidade que breve sobrepõe a tormenta. exercito os pensamentos na delícia de me conhecer, mas ainda doce e breve não há obrigação em me encontrar. hoje não sou inteira, hoje quero ser múltipla, diluída e camuflada no mar em que passeio. entre eu e a água, nada: o esforço da mudez e a palidez dos desencontros. mostraste-me ontem uma imagem que me fez sentir como são leves as coisas, e como escorrem, embora menos do que eu. quis dizer algo que soasse colorido para preencher teus espaços e lembrei que nenhuma cor há de preencher se for sozinha. acontece que hoje não há cor nenhuma, o mundo é translúcido e posso ver pelas entranhas de toda e qualquer coisa, e o desejo de conhecer me põe tão ocupada em mim que quando vejo é escuro e o sol já se pôs. um dia longo, um dos dias de uma sequência finita e doce, que deve preceder algo bom, posso sentir - enquanto isso calo, calo e vou, apenas, sem respirar. para conhecer meu limite nessas águas, para fazer-me toda fluir, para tornar-me outra coisa, só por hoje. e então, há pequenos ocos de luz que passeiam ao meu redor, pequenos leves sinais delineados na superfície. sob meus pés, a imensidão.

, e pegou de mim o que eu tinha de melhor. o que criei de mais bonito. pegou minhas tardes de sol, minhas músicas favoritas, meus doces sabores. meu respirar. pegou a parte mais doce que havia em mim. pegou minha vontade, a minha coragem, o meu peito em brasa. meus olhos molhados. o meu perdão.
pegou o meu sossego, meu medo do mundo, minhas lágrimas claras. os pequenos chocolates, a janela do carro, a cortina aberta, pegou minha barraca, minha cobertura, o meu filtro amarelo, o meu pijama, o meu café fresco. pegou de mim meu arrependimento. minha guerra e minha paz. me arrancou do morango o vermelho, da chuva a brisa, da tarde a cor. minhas noites dormidas, a minha voz grossa, minha crença no agora, a minha inocência, os lábios corados. a reciprocidade. a luz dos olhos. me arrancou as belezas, meu samba da vida, minha carne inteira, todo o meu pulsar.

, da maldade que és, por vingança, por medo; impulso; podridão. condenou meus amigos às trevas, meu corpo à luxúria, meu eu ao desassossego. fez
de mim pouco palco, sadia, serena, usou da inocência, da falta de assunto, de frivolidades, usou do vermelho, da flor que coubesse, do sangue, da raça, da luta de galos, dos dias de ócio, da imundice, do feio, do sujo, do podre do velho do escasso, do ardido, do ácido, do fundo, do verde dos musgos, esgotos, subúrbios, cuspiu na minha cara, me fez limpar, chorar, doer, rasgar

, sendo eu a culpada, megera, maculada, me jogando na cara, na rua, na praça, cobrando perdões, cobrando verdades, e eu que rompia, que ardia no mundo, e eu que insistia, no escuro, no medo, no que sobrou de honesto, sincero, ilusório

, ainda que arda, que mate, que fique, ainda que parta e apodreça ainda mais, que cheire, que vaze. ainda que doa, e há de doer, que chore, que queime. apesar dos teus olhos, da tua pele invisível, teus malabarismos, mentiras, promessas. apesar dos chamados, dos ecos vazios, das inverdades, dos falsos versos, de cada uma das palavras que usastes tão mal, tão impura que és, que soas, que mostras. ainda que sangre, que caia em pedaços, ainda metade, incompleta, inundada, mesmo que não acredite, que odeie, que marque. apesar do pior, do desejo terrível, do inevitável, do ódio guardado, apesar da vontade invingada, do grito contido, do rombo no peito


02 julho 2009

tua lâmina flácida saiu com furor mas sem certezas e acabou por destruir as nuvens que suspenso te mantinham
(não penses jamais que tudo virou pedra, porque se tem uma regra que meu coração sabe de cor é que é preciso sair por aí amando todo mundo)
novembro 2007

noite

não alimento nenhum sigilo, dou cria a obviedades cruas na luxúria das rotações. de onde estou vejo quatro paredes e me disponho em confronto a todas elas, mórbida e ansiosa. pela manhã mal podia respirar: a ameaça de tantos mais segundos. permanência. por um instante sinto em carne a fugacidade das essências e as vejo percorrendo membranas lúcidas do passado. as horas são leves mas trazem coisas pesadas - e agora estou à beira, o corpo treme, os olhos fixos, o silêncio perturbador do reconhecimento.

noite

vestida em coragem eu vou, deixando marcas de sangue e água por onde passo. transbordar: não há a quarta parede e o público interpreta os olhares que despencam sobre ele sem qualquer preocupação. noites nuas sob um céu sem fim, confissões em sussurros e o desejo intrínseco da carne surgem das estampas floridas e seguem dançando durante toda a noite e meu corpo treme sem controle, obedecendo mais às urgências da alma. inédito, o perdão não é invocado e ficamos a assisir a turbulência das reações das chamas de uma honestidade que é queimada sem arrependimentos, e cuja dor é sufocada pelos falsos ideais de qualquer coisa dolorida e infiel. penso-o como é pra mim mas escorrego pela translucidez de um carinho empoeirado. mais que espelho são seus olhos, e para eles me ponho rasgada e ácida. ser de extremos e não prometer nada nunca além do meu pior.

noite

o calor de um sol noturno faísca meus desejos e volto à outra madrugada, quando via-o dormir e meu corpo não pôde outra coisa que não acordá-lo em gota. rasgar a carne e dá-la inteira e insensata, passada a ferro, despida dos ideais imaculados, porque só assim seria vã suficiente. pra sentir-te inteiro. pra conhecer de ti a única faceta verdadeira de teus múltiplos lados dóceis e infantis. pra dar-me sem raciocínio à similitude e ao doer. pra colocar em torno de nós uma manta que nos fizesse cúmplices, sadios em nós mesmos, confusos entre braços e pernas e vontades. pra se aprender do incontrolável e do inocente. pra nos dar o único rascunho de sincero que nos foi possível em tão pouco tempo.

noite

mantenho-me em mim e não me permito a invasões. passeiam por meu corpo as dores sempre bem vindas e assisto em busca de concretudes. não há nada em volta. a ignorância vêm de mãos dadas com a perda e o desencantamento, me ponho quieta e escrevo. para ninguém.

noite

da janela vejo o nascer, o estar e o pôr do sol. ignoro o momento da perda e adio a decisão já tomada, sabendo da maldade da esperança e mesmo assim à mercê de toda ela. são poucas luzes coloridas e o som dos aviões me invadem como se fosse eu própria levitar agora mesmo. se na esquina no bosque na rua no topo do mundo te encontrar, vou dizer meu amor me deixa meu amor, que tudo ruiu foi por tão pouco, que deixei invadir penetrar macular me perdoa meu amor que não fui boa nem suficiente nem fragmentada, meu amor se te gritei foi porque não cabia e só, se rasguei ou arrastei o mundo nas costas me perdoa, se deixei cair pelo caminho se pisei em cima e se por acaso ele rolou meu amor, me perdoa se não pude permanecer ao fogão ou limpar melhor a tua casa ou arrumar melhor a tua cama ou se não acertei no livro na música no tempero, meu amor, me perdoa se não coube nos teus pequenos sonhos nos teus pequenos ideais, meu bem, me perdoa por não ter dançadoa tua música fechado as janelas ou aceitado tantas palavras que cheiravam mal meu amor, me perdoa, por ser assim inteira dura por dentro consistente e romântica e me perdoa meu amor por ter acreditado na sinceridade da carne do desejo da coragem, meu bem, me perdoa eu vou embora eu não volto mais eu não passo mais aqui eu vou embora meu amor

noite

uma vez era manhã e eu disse "quando eu me apaixonei", sabendo que essa pequena frase ia fazer inundar uma ilha do outro lado do mundo. deviam ser passarinhos lá fora, havia também uma cidade vazia e uma chuva fina acontecendo, eu não via mas podia sentir. disse assim para ele, em discurso direto mas livre de mim mesma, como quem assume uma coisa em terceira pessoa. ele abriu os olhos e eram olhos pesados doentios, e seus lábios tremiam com medo de que eu tivesse dito humilhada, mas eu previ e disse que não. disse "quando eu me apaixonei, eu sabia", disse que sabia mas não quis dizer que nunca acreditei. os olhos continuaram pesados e doentios e eu fui até o espelho, na esperança de descobrir quem foi que havia dito aquilo.


aquela era a época dos anúncios de fim do mundo, então era inevitável que nos passasse pela cabeça os pensamentos melancólicos que sempre acompanham o fim - qualquer que seja ele, é da natureza do fim ser triste e melancólico - e até o pôr do sol, lá estávamos, ao pé da árvore, enumerando as pequenas coisas que tínhamos vivido.
era época dos anúncios de fim de mundo, e nos perguntávamos se haveria mesmo céu e inferno, julgamento final, todas essas ameaças que nos fazem viver com medo. sempre achei que nunca haveria nada disso, mas era inevitável também que todas as pessoas do convívio nos visitassem em lembrança, pra que pudéssemos nós, no egoísmo da sede de sabedoria, julgá-las previamente, mandando-as pra onde achávamos que deveriam ir. as minhas, na maioria, acabam no limbo, como eu.
então houve uns minutos de silêncio e passei a acompanhar, de memória, as mudanças das pessoas com as quais eu convivia, desde que as conhecia e até aquele momento. é preciso 'cultivar algumas pessoas para que se isole toda a outra humanidade'.
estávamos fatalistas como deveriam estar dois seres humanos à espera do apocalipse. por um momento desejei não ter cultivado pessoa alguma, logo não sofreria com o fim de mundo ou os destinos opostos que pudéssemos ter, mas então pensei que coisa besta seria privar a vida por medo das coisas tristes que podem haver. lembro de ter pensado ainda que, se pudesse, colocaria sentados ao pé da mesma árvore todas as pessoas incrédulas que conheço, todas as medrosas, as apáticas, todas as pessoas tristes, as desacreditadas, as egoístas, todas aquelas viciadas em recolher argumentos pra justificar o medo da entrega, e ficaria com elas até que o mundo acabasse, reunindo sambinhas fotografias histórias e versos, no esforço contínuo de convencê-las de que as coisas valem a pena, veja só, é só você acreditar, a tristeza é inevitável de qualquer forma então é preciso compensar com alegria.
o coração bateu tão forte com a idéia que precisei compartilhar. ouvi que não se deve convencer ninguém de nada, que as pessoas são diferentes e que cada uma vive à sua maneira.
esperamos até o pôr do sol. o mundo não acabou.

01 julho 2009

a tormenta a calmaria a tormenta a calmaria a tormenta a calmaria
a tormenta a tormenta a tormenta a tormenta a tormenta


aos poucos, bossa nova




21 junho 2009

observação teórica II

a porta está fechada. é um apartamento claro de janelas grandes, e a luz da manhã invade a sala toda através das cortinas que balançam com o vento. uma janela está aberta e outra está fechada. há um retângulo de luz formado pelo sol direto, que ilumina o girassol. entre os dois sofás claros há um colchão posto ao chão. o colchão comporta um travesseiro branco, um lençol de flores claras, e rafael, que ainda dorme. no chão há um roupão branco, uma toalha de banho e dois travesseiros. as paredes são decoradas por quadros que estampam fotografias e a imagem de uma pintura à óleo. no aparador de madeira clara há um calendário, três porta-retratos e uma pintura com escritos de neruda. ana está despida, sentada em uma cadeira, e apóia os pés no sofá enquanto lê um pedaço de papel escrito à mão, em tinta azul.

O que corrói mesmo não é o que se faz ou se deixa de fazer - é o tempo, a idéia do tempo, esse ser suspirante e devastador, para criar um pouco de poesia com o que não se compreende

cristóvão tezza

20 junho 2009

tô meio ocupada sendo passional

17 junho 2009

não fosse isso

e era menos

não fosse tanto

e era quase




leminski

peito em flor

em luto aos dramas mesquinhos de todos os dias,
pra uma vida que se revelou outra tão de repente


tens os olhos jovens e os braços fortes e tua dor que é invisível para os outros pelo menos durante os próximos dez anos. teve o futuro chegando cedo demais e agora tens uma dor que não sei medir embora tenha achado por tanto tempo que as minhas eram assim tão compridas. vai ver eram só tripinhas de dor, coisinhas que precisavam só de um beliscão. não sei do que a tua dor precisa. queria saber do que ela precisa pra eu poder oferecer de peito aberto, sempre. queria saber pra poder confortar, poder dar colo, chão e céu. queria saber, queria entender, queria que você sentisse no abraço que não está sozinho. a dor que eu vi nos teus olhos me fez querer tanto me juntar a ti só pra que desses olhos pudesse sair, pelo menos, a solidão.

queria saber da tua dor pra dizer o que você precisa ouvir. é um momento tão teu que não posso evitar desejar desesperadamente fazer parte. hoje as coisas tiveram tons pastéis e só você era colorido. e as tuas cores eram tão bonitas.

tenho a te desejar alegrias, tristezas e mais daqueles momentos em que você pensa não querer estar em nenhum outro lugar senão ali. tenho a te desejar vida, apenas. de repente e pela primeira vez, tive vontade de colocar a minha à disposição. se isso se chamar amor, hoje você é mais importante do que qualquer coisa no mundo.

16 junho 2009

qual a diferença entre desistir e parar de tentar?


"São 'convenientes' as coisas que, aproximando-se umas das outras, vêm a se emparelhar, tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o começo da outra. Desse modo, comunica-se o movimento, comunicam-se as influências e as paixões, e também as propriedades. De sorte que, nessa articulação das coisas, aparece uma semelhança.(...) A alma e o corpo, por exemplo, são duas vezes convenientes: foi preciso que o pecado tivesse tornado a alma espessa, pesada e terrestre, para que Deus a colocasse nas entranhas da matéria."

Foucault

barthes, peirce e o meu desencantamento do mundo



a dança, matisse

filhos, textos e amores têm em comum a pior das características. nenhum deles jamais será teu. teu filho nunca será teu, teu amor nunca será somente teu. teus textos, sejam prosa, poesia ou dissertação, não importa: jamais serão somente teus. você os pare para o mundo, num processo tão intenso quanto dolorido de carinho e criação. e o mundo fará deles o que bem entender. porque um momento, mesmo que registrado documentado fotografado, é um momento morto: não volta mais. uma música ouvida, uma fotografia, um recado, são todos símbolos, memórias mórbidas de um passado que fez parte, mas morreu. não há presente. pode haver, ao máximo, a lembrança - o mais é todo ilusão.

qualquer fruto da criação (pode ser um texto em prosa, quem sabe) é lançado por ti para o mundo. o mundo terá seus próprios referenciais: podes fazer o melhor de ti ao produzi-lo, lançá-lo, construí-lo, mas o mundo fará dele o que quiser, e nunca será aquilo que você desejou. porque o mundo, como as pessoas, são assim munidos de tantas coisas, coisas que maculam as percepções e que tornam tudo uma outra coisa diferente.

teu amor é também fruto da tua criação. ele jamais será teu, ele é do mundo, e o mundo tem olhos verdes (o mundo e o ciúme de shakespeare). e podes debater, gemer, cansar, mas o mundo fará dele o que o mundo bem entender.

15 junho 2009


Cansou-se previamente das pequenas luas que ainda teria, revoltando-se e cedendo em seguida, até o fim.

clarice

14 junho 2009

querido diário,

hoje, quando acordei, a gata estava mastigando meu cabelo, como de costume. o sol já estava lá em cima, o termômetro do Itaú marcava 12 graus e o calendário da mafalda tinha quatro ou cinco itens que deviam ser resolvidos esse domingo. lembrei de andré e das músicas que a gente ouviu noite passada e botei nelson gonçalves pra tocar. fiz comida, arrumei a casa, recolhi a roupa, brinquei com a gata, empilhei na mesa os livros os quais vou consultar, as revistas que vou ver pra fazer o projeto do freela. um banho, um bombom de uva, um copo grande bonito e gelado de suco de melancia.


tem ferida aberta e tem peso no peito, mas o domingo acontece e a casa está em paz.

13 junho 2009

Perto da dor de saber
Que esse céu não existe
Que tudo o que nasce
Tem sempre um fim triste



vinicius e
tom (herança de gabriel)

conheci um velho triste.
o velho tinha a pele enrugada. tinha um escuro ao redor dos olhos, um escuro feio, úmido, enrugado. um escuro que não era escuro por causa do tempo, por causa da chuva ou por causa do cigarro, era um escuro molhado, um escuro que guardava mais lágrimas do que comportaria o oceano atlântico. o velho tinha pés de galinha, sobrancelha escassa, amarela. tinha cavas fundas no rosto, provas de feridas que talvez já tivessem sarado. mas não era por isso que o velho era triste.
o velho tinha a boca seca. tinha regulada a quantidade de água, a quantidade de açúcar, de sal. o velho tinha poucos dentes, todos falsos, e comia com dificuldade. os lábios eram abertos, rachados e feridos, mal se fechavam. a boca do velho já cheirava aos limites do corpo humano. o sorriso, quando havia, era de uma comédia baixa. inocente.
o velho tinha pouco cabelo na cabeça, quase menos que nas orelhas. o crânio à vista, delineado. o pescoço amarelado, uma ou outra mancha vermelha, rastros de um sangue que cansou de circular. mas não era por isso que o velho era triste.
o velho andava com dificuldade, joelhos doloridos, cotovelos doloridos, as ancas pareciam congeladas, imóveis, não mais ativas, sustentadas pelas pernas fracas e finas, pernas que já foram grossas e fortes mas que já não eram mais. o velho precisava de apoio para tomar banho e nunca esfregava as costas.
o velho gostava de futebol, de samba e de cerveja. não jogava mais, não tocava mais, não bebia mais. mas não era por isso que o velho era triste.

os olhos do velho viam as crianças, os jovens, os homens e as mulheres. os olhos do velho já não tinham mais a nostalgia. admiravam, apenas. os olhos do velho viam crianças aprendendo a escrever; crianças chorando por um doce caído ao chão, crianças correndo felizes na rua.
os olhos do velho viam jovens traçando planos para a vida, se apaixonando, imaginando um outro mundo tão possível. os olhos do velho viam jovens tristes e desiludidos, jovens que tiveram o futuro arrancado, jovens saudáveis com caminhos a percorrer.
os olhos do velho viam mulheres bonitas, mulheres feias, mulheres ingratas, mulheres de bom coração. viam mulheres mães, mulheres apaixonadas, trabalhadoras, mulheres promíscuas, mulheres sem esperança.
viam homens de gravata, homens sem gravata, homens procurando lixo, procurando ouro. os olhos do velho viam homens bons e homens ruins, homens com pressa, homens com fome, homens dentro dos carros, homens indo embora.
mas não era por isso que o velho era triste.

o velho tinha a vida compartilhada com sua mulher, uma única mulher, digna do seu melhor e do seu pior. uma mulher companheira que havia cometido erros, que podiam ou não ser grandes o suficiente, mas não importava. o velho tinha a vida compartilhada com essa mulher e envelheceram juntos, na compreensão mútua da tristeza de ver tudo se esvair. mas não era por isso que o velho era triste.

o velho era triste porque havia aprendido a ler, a escrever, a jogar futebol. porque havia perdido um doce e chorado por ele, porque havia feito planos, acreditado neles, feito o possível para que lhe fizessem parte da vida. o velho era triste porque havia se apaixonado, havia sido saudável, havia trilhado um caminho, caído em alguns momentos, sofrido em muitos outros. ele era triste por ter tido mulheres de todos os tipos, de todas as cores, amantes ou não. era triste porque havia procurado por ouro, andado em carros, tido pressa, vontade, coragem.
o velho era triste porque havia vivido e apesar da vida tinha aprendido muitas coisas. aprendido sentimentos, paciências, necessidades, aprendido o que é real e o que não é, o que é preciso e o que não é, o que é possível o que não é. aprendido o que se há de fazer quanto ao outro, aprendido como é mais fácil ou o que surte mais resultado. o velho era triste porque sabia o que haveria de dizer, o que se haveria de fazer. porque sabia o que já fora tentado antes e o que ainda não havia sido. o velho era triste por ter vivido e ter aprendido todas essas coisas, coisas que agora já não eram mais úteis, coisas que só fariam sentido se fossem repassadas para alguém mais vivo do que ele. mas as pessoas vivas não querem ouvir.

aquele velho era triste como mais ninguém.


PROCURA-SE

procuro definição dos conceitos de verdade, amizade e sinceridade, com exemplos práticos e mostras reais. motivo: os meus foram roubados pela vida, procuro novos para substituição. preço a combinar, mas já aviso que estou disposta.

12 junho 2009

o que será que será
que dá dentro da gente e que não devia
que desacata a gente, que é revelia
que é feito uma aguardente que não sacia
que é feito estar doente de uma folia
que nem dez mandamentos vão conciliar
nem todos os ungüentos vão aliviar
nem todos os quebrantos, toda alquimia
que nem todos os santos, será que será
o que não tem governo, nem nunca terá
o que não tem vergonha, nem nunca terá
o que não tem juízo

chico

11 junho 2009

desamada
dolorida
desandada

desastrada
desatenta
descabida

desnutrida
perdida
provada

limitada
afogada
desistida

demotivada
desesperada
desentendida

desalmada
inanimada
incolorida

desinspirada
destraçalhada
desiludida

aproximada
aterrorizada
embrutecida

encorajada
apavorada
escurecida

deslibertada
desconsertada
tão decidida

reavivada
reanimada
desmortecida

impreparada
improvisada
impercebida

em sangue puro
em leite puro
no fim da vida

10 junho 2009

nature has fixed no limits on our hopes

07 junho 2009

se você tocasse a valsa vienense

transbordar

às favas com minimizar danos. caution could but rarely ever helps. a sorte de um amor tranquilo já se chama sorte por algum motivo, palavras que batem em compasso não são nunca dadas de graça. hoje só me resta compaixão a quem se engana: o corpo diz tanto mais que a boca.


pra sentir há de se ter coragem. há de se ter coragem para acordar pela manhã e enfrentar mais um dia sem sentido e sem direção, mas há ainda mais de se ter coragem para sentir. a complitude triste e doce de quem sente há de ser paga de alguma forma, digna ou não, justa ou não, mas quem há de clamar justiça, ao fim? não é preciso mais do que pesar o humano. o que, no fim, se leva daqui, o que no fim é teu por direito, se não só e simplesmente tudo aquilo que sentiu? in the end all you can hope for is the love you felt to equal the pain you've gone through. porque doer também é necessário. esquivar-se é triste. corredio.

ninguém é humano na totalidade porque é preciso sobreviver. já o oposto não é nada mais que triste. querida, não se engane: nem eu nem você temos a natureza amortecida.

e o amor e outros demônios, onde foram parar? o amor nos tempos do cólera? a linha entre a entrega e a desesperança se mostra tênue e o mundo varia entre o furta cor e o preto e branco. ou se precisa acreditar ou se amortece, e pedras hão de vir mas não respeito a indiferença. e agora, josé? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta. e agora?

agora a paciência e a beleza e o sofrimento de que tem a agonia do mundo por todos os dias, que entra pela janela, pelos olhos, o coração, sem vergonha e sem juízo, no tapete atrás da porta. à espera, que transbordar é não caber. e se o que é em excesso há de fazer mal, pois que então eu morra de tanto sentir.

ah, não existe coisa mais triste que ter paz
e se arrepender, e se conformar
e se proteger de um amor a mais









The truth can't hurt you it's just like the dark
It scares you witless
But in time you see things clear and stark

maldito III - A Mãe



Werner Bischof, India. 1951


quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
já foi nascendo com cara de fome
e eu não tinha nem nome prá lhe dar
como fui levando
não sei lhe explicar
fui assim levando
ele a me levar

O Meu Guri, Chico Buarque



A mão, nunca levantei; a mão, o cinto, o fio de luz. Esse intenso que me dói tão fundo foi sempre tão mais forte do que a raiva, do que a decepção, do que a dor. Eu e todas aquelas como eu nos munimos do paradoxo divino de conviver a dor e a alegria, e da desgraça de guardar no peito tanta coisa que ninguém nunca soube nomear.

Do que sou feita não sei dizer. Abro os olhos e respiro a agonia de me saber o mais humilde dos seres humanos; aquele que menos sabe, aquele que menos diz. Entre remédios improvisados e convencimentos de mim a mim mesma, não sei dar nome a metade daquilo que me aperta o peito. A culpa é minha, única responsável: como poderia alguém nomear o que não sente? Ah, que se pudesse pedir, pediria só uma coisa, uma só, longe de mim debulhar-me em pedidos e tristezas, que se nasci mulher nasci pré-fadada a tais tormentas. Pediria e isso sim, a calmaria de um rio translúcido, tão opostamente distinto ao meu coração. Que não me dói quando me bate, não me dóem as palavras amargas e dilacerantes, não me dói a vergonha frente a outros que tem os seus mais bem arrumados e sucedidos, não me dói tanto a mentira, a traição, a indiferença, a violência praticada, o desalento, o desconsolo, o desatino. Ou, se dói, quem sou eu pra reclamar; se me vi acorrentada, algemada, retorcida no momento em que dividi-me em dois, em que arranquei de mim toda a parte boa, a parte pura, a parte digna, e que a tive engolida pelo mundo sem que nem tivesse oferecido, e o mundo estendeu os braços feios sujos e verdes e levou consigo a minha parte melhor e assim largou-me à tortura de assistir aos poucos ao corrompimento de tudo aquilo que era eu e que não é mais. Assim, dei-me à desgraça: a desgraça de não saber doer, de absorver a dor e a amargura em uma esponja vermelha e pulsante, e que de lá vá tudo sabe-de lá para onde, que tenho outras preocupações nessa vida além de choramingar. Tenho ainda de dar de comer, tenho de costurar os cortes, de limpar as carnes, tenho de fazer ninar, de me oferecer o peito todo aberto àquele mesmo montro das mãos sujas quatro vezes por dia, se não mais, tenho ainda de tomar cuidado com os carros, com os vírus, com cadarços; tenho de esquentar a sopa, o colchão e o desespero. Tenho de engolir pregos quando me perguntam porque é que o fiz, que não o tinham me pedido; quando passo a ser responsável por tudo, porque é minha obrigação aguentar; quando sou velha, resmungona, quando não mereço atenção, quando envergonho, diminúo, quando sou feia, dou trabalho, exijo tempo, quando não me importa o peito mas a carteira, quando não valho a pena, simplesmente. E na madrugada seguinte, de olheiras e coração em boca, a esperar passos que me acalmem o peito condenando finalmente a volta saudável de alguém que sou ou fui, quando me levanto e sei que vou a dar de cara, mais uma vez, com um mundo inteiro verde e sujo cujos dentes estão à minha porta e a língua ácida entrando pelo quarto daquilo que já fui, me apego às panelas, às facas, aos isqueiros, àquilo que tiver a mão e sigo, rumo ao mundo, me valendo daquilo que tenho e que não tenho, do peito, das vozes, do estômago, aos gritos e com força, atravancando o caminho de qualquer que seja a ameaça que pode ser que faça doer a parte separada de mim, mesmo essa parte às minhas costas, a me espetar e me puxar pelos cabelos ansiando entregar-se ao monstro, que chama de jeitos tão sedutores mas que eu, por instinto, desconfio e não posse convidar a entrar. E apunhalada pelas costas eu sigo ali, fazendo dos pés raízes fortes que sustentem, à frente, o mundo. Mas por isso não posso reclamar, ora essa, não por isso, porque esse é meu fardo e é a isso que sou. Que se pudesse pedir, pediria uma coisa só, pediria a calmaria de coisas que continuem a ser como são, e que se tiver de doer, que doa; porque é assim que se combate o perigo e é assim que se respira o amor, mesmo escondido, mesmo um amor arredio, que não me vai voltar a mim: sou provedora e não cabe a mim me renegar ao posto. Se sou mãe de filho, sou mãe de todo o resto das coisas que existem, de todas as coisas que existem, porque não há ainda nada nesse mundo que se tenha feito imune pelo que sobrou das partes arrancadas.

04 junho 2009

pequenas coisinhas bonitas de todos os dias

Flávia diz:
você vai pro rio?

' iasamonique diz:
talvez :)

Flávia diz:
que massa
hahaha
vai na lapa
a lapa é muito você

' iasamonique diz:
muito eu?

Flávia diz:
é tipo
tem bar de samba, bar de mpb, bar de jazz, tem de tudo,
e é todo mundo misturado
e a cerveja é sempre muito gelada
e o povo anda bêbado cantando pelas ruas
aaaaaaaah, é lindo

maldito II - O Padre


Martine Franck, France. 1994.

Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus?
Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros,
nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos,
nem os bêbados, nem os difamadores,
nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus.


1 Coríntios 6:9


Mas por que razão gritam tão altos estes sinos? Não parece-me outra coisa que não a insistente zombaria àquilo que reprimo abaixo da batina. A meu mumúrio, que ninguém ouça. Nem mesmo Deus, se for possível.

Hoje aniversariamos, meu Pai; eu e esse meu respirar pesado, aliado fiel desde a primeira missa ministrada em Tua voz. A velhice de nossa comemoração guardo só a Ti e incapaz seria minha garganta de pronunciá-la em alto; esquivo-me de semear qualquer desconfiança quanto a botar em contas os anos de minha dedicação. Sei também que a isso nada tem a ver o Teu descontentamento, e à disposição deixo meus ouvidos para o que julgares necessário para a minha Rendição. Sim, meu Senhor, que me sinto digno de Teu perdão, embora há muito tempo tenha deixado de sentir o gosto do Teu sagrado corpo; o aroma do Teu sagrado sangue. Sim, meu Senhor, que tenho consciência do tamanho do tumor que se alojou em meu peito e do fracasso podre e pagão do qual sofri por ter deixá-lo em carne viva e, nem assim, tê-lo arrancado. De lá para cá, passaram-se mil ave-marias; vinte cinco mil pai-nossos; e não sei contar por quantas vezes senti o coração parar sob o peso branco de Seus olhares. Eis que revirei o Livro outras tantas vezes, como não fazia desde os tempos de seminário — e, meu Pai, por onde devo começar? Uma vida inteira de estudos não adiantou-me de nada quando o pecado me veio bater à porta e profanou em inundância todas as esquinas de minha vida. Que, nas mesmas páginas onde encontrei perdão e aconchego, achei também ameaças e terminâncias. Das mesmas palavras extraí determinações impiedosas e calmarias à correnteza do coração. Ó, meu Pai, que desta última vez deixei o Livro não só com lágrimas, mas com outro sentimento, um sentimento negro no nome mas de uma sinceridade tão intensa que custo a não vê-lo luminoso, uma coisa que me toma, por vezes, quando vejo o quanto somos reprimidos de sermos o que somos, o quanto sofremos na busca eterna de nos tornarmos aquilo que, na verdade, não nascemos pra ser, e que muito raramente o desejamos de verdade; que na verdade nada mais queremos a não ser poder gozar dos frutos que a vida nos oferece de mão amiga, sem que precisemos pedir — mas não podemos, ó Pai, não podemos, porque temos olhos em todos os lugares que nos perseguem e buscam e acorrentam e por vezes dão-nos chibatadas, e mostram-no alguma vivência passada de alguém que não reconhecemos como nossos e nem ao menos entendemos qual relação têm eles, indivíduos longínquos e tão indiscutivelmente egoístas como nós, e por quê temos de levar nossas atitudes com um pesar acumulado pelo qual não fomos nunca responsáveis, mas, se não o fizermos, estamos condenados a uma vida ainda pior do que esta, em outro lugar que não nos permitem nem ao menos conhecer as condições, porque tudo nessa vida é assim, um passo no escuro, e nós que estejamos prontos para tudo e qualquer coisa e nada mais digno do que nos resignarmos e agradecermos, não é, meu Pai, pela oportunidade de atravessar mais um dia de mágoas e tristezas e flechas atiradas contra o peito; somos gratos, sim Senhor, eu e os montes de pobres almas que vêm até a Sua morada pedir perdão por uma regalia a mais, por um desejo qualquer incontrolável que tomou conta de um coração outrora fiel, pela tristeza que nos levou a desejar o mal, pelo amor àquilo a que não se tem direito, pelo desejo carnal, pela revolta com essas grades postas por todos os lados, por ter que agüentarmos calados todo tipo de injúria e infelicidade só pra estarmos na fila daqueles que talvez, algum dia, tenham as almas aquietadas em um reino celeste que ninguém nunca provou existir! * ............ Vês, meu Pai... vês onde me encontro, onde é que me botaste, meu Pai, perdoa-me, por que me fazer passar por tanto? Eu, que sempre estive aqui a seu lado, agora derramando sobre ti tanta heresia, mesmo sabendo que por mais inquieto que esteja meu coração é Tu que sabes dos valores e da fé e que é nela que preciso depositar todo o meu ser. Quanta vergonha, meu Pai, quanta vergonha, ao sabão com toda a minha boca e toda a minha língua, que Teus sagrados ouvidos não hão de sofrer novamente a mesma imprudência. Eu, que aniversario hoje uma carreira toda de dedicação, ó, Senhor, perdoai, perdoai. Haverás de punir-me, não é? Já o prevejo e aqui me comprometo a jamais profanar uma só palavra a pedir alívio do que julgarás ser meu castigo. Aceitarei, Senhor, de comum acordo, por uma redenção que espero conquistar novamente, assim que purificar meu coração. Ó, Pai, que já o sinto purificando... ó, Pai, como é grande o Teu poder, já sinto Sua presença a acalmar-me a inquietude. Perdoai, Pai. Perdoai, que eu também hei de garantir uma nuvem confortável no reino dos céus.
 

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