15 dezembro 2008

a história que podia muito bem ser minha mas não é



Manaíra tinha o coração do tamanho de um alfinete. Manaíra era grande, forte, bonita, não daquele jeito tradicional de ser bonita, mas carregava nos olhos um charme sem fim. Manaíra não tinha muitos afazeres: lia um pouco menos do que gostaria de dizer, andava até a mercearia, todos os dias, para comprar pão e esticar os olhos pra um pouquinho além das janelas, contava uma vez por dia uma história que era mentira, mas que não machucaria ninguém. Manaíra tinha o coração bom. Mas ele era do tamanho de um alfinete.

Manaíra tinha problemas para dormir. Todas as noites, virava de um lado a outro mais de setenta vezes, algumas com força, e bruscamente, como se pra espantar alguma coisa que a estivesse entrando pelos cabelos. Manaíra recebia visitas todas as noites antes de dormir: eram todas as pessoas que haviam tentado - ou poderiam ter tentado - entrar em seu coração, mas não couberam por algum motivo. Manaíra pensou que algumas deviam ter os pés muito grandes, ou as cabeças, ou os egos, quem sabe - mas não faria diferença de qualquer forma, ela pensou, porque não caberiam, de qualquer jeito. Manaíra sofria de insônia quando procurava alguma maneira de fazer crescer seu coração compactado: nunca encontrou.

Manaíra lembra com carinho das vezes que, por alguma coincidência, ou simples sorte, conseguiu que sua pequenina sala de estar recebesse alguém por inteiro. Em todo o tempo, não seriam mais de quatro vezes, e ela entristecia, mas pensava que poderia ser pior e virava-se na cama novamente. Certa vez, entrou em seu coração alguém que ela jamais esperaria. Pensou que ironia!, tantas vezes querendo tanto que as pessoas me coubessem, e então assim, sem nem querer, elas me cabem, e ficou sem saber bem o que pensar e o que sentir, era ainda tão tão novo pra que ela pudesse sentir alguma coisa. Manaíra passou alguns dias com o coração-de-alfinete apertadinho, ocupado em todos os cantos, tendo de abrir a janela pra que seu hóspede pudesse respirar. Manaíra não queria sufocá-lo, mas era tudo tão pequeno naquela salinha de estar que, tendo o hóspede entrado, tiveram de sair os móveis, as flores, as almofadas, e Manaíra olhava de longe, porque afinal quem é que mexe a fundo no seu próprio coração? Foi quando o hóspede de Manaíra sufocou, não podia nem ao menos movimentar pela sala. Ficou triste, definhou, e de definhado que estava, escapou pela porta, em uma pequena agonia daquelas que coçam a garganta daquele jeito ruim de se coçar.

Manaíra assistiu à partida inquieta mas imóvel, deitada na cama, em um daqueles instantes adocicados, antes de cair no sono. Manaíra já estava meio inconsciente, mas lembra-se de ter pensado: ah, que pena esse coração tão pequenino.

Manaíra amanheceu com a sala de estar em ordem, à espera de alguém que a venha visitar.

as usual

Resoluções de novo-ano

comprar um relógio de pulso
revelar pessoalmente minhas fotografias preferidas
entrar na yoga
no pilates
no budismo
na umbanda
checar o orkut uma vez ao dia, no máximo
fazer uma agenda telefônica
arranjar alguma coisa realmente importante pra se preocupar
dizer, em média, dezesseis "foda-se" por semana
botar o coração em regime de engorda
reclamar daquilo que for preciso reclamar
e só
passar a olhar por quem não tem casa
não tem dinheiro
não tem saúde
olhar também por quem não sabe o que é que não tem
assumir o gosto pelas artes visuais
ler todos os garcía márquez restantes
julgar ainda menos
conhecer cinco novas cidades
esquecer o que se precisa esquecer
ser mais cazuza que regina
ser mais nelson que lispector

10 novembro 2008

te disse que entrava um frio-de-sol pela janela, mas não quis me vestir. o frio não tinha nome nem corpo mas sabia fazer os braços arrepiarem, assim, fazia tanto tempo que. do que é que a gente precisa pra se sentir vivo? ele perguntou, mas eu fiquei quietinha, como se soubesse a resposta mas não quisesse contar. no fundo, eu mal prestava atenção. é que o sol fazia um desenho engraçado nos cabelos dele, e eu olhei e achei parecido com um filme que vi fazia um tempo. era uma menina que tinha ficado pálida de tanta angústia que ela guardava, aí ela resolveu sair e conhecer o mundo. engraçado como as melhores decisões são tomadas nas horas de maior desespero. ele me perguntou baixinho o que eu ia querer comer, já fazia tempo que o mundo girava lá do lado de fora, mas eu nem percebi. sabe o que eu tenho aqui? um grande e fundo poço preto, preto não, azul escuro, e ele nem dói, parece que nem pra isso presta, ele só serve pra me tragar, e ele traga tão fundo, como se não fosse devolver nunca mais tudo isso que ele traga, as cores, as dores, meus cabelos, e isso me deixa triste, triste, como quando eu vejo uma criança com fome na rua ou quando o céu raia cor-de-lis, eu quis dizer, mas senti como se ele não fosse ouvir e então fiquei. ele se debateu um pouquinho com o lençol e deu risada de tão bagunçado estava tudo, engraçado, lá fora as coisas pareciam em perfeita ordem, mas naquele quarto, mas. enquanto eu pisquei eu pensei em um milhão de fotos e coisas que eu tinha pra dizer pra ele ou pra fazer durante a manhã, antes que chegasse o dia 22, mas me deu uma canseira tão pesada que eu só consegui suspirar. ele olhou e disse Você tá tão quietinha hoje, tudo bem? pensei que se eu tava quietinha não devia estar tudo bem, que eu jã não sabia apontar onde ficava o meu coração porque eu tinha a impressão que ele havia se diluído pelo corpo todo e perdido a essência e não fazia mais nada a não ser vagar pelas veias todas sem saber direito pra onde ir, coitado, não foi pra isso que nasceu, e essa coisa diluída de não saber o caminho transformava tudo em um grande emaranhado de coisas que não poderiam estar no lugar certo, mas não falei isso, não, falei só que estava tudo bem e que precisava ir trabalhar.
no caminho do trabalho não tinha flor nenhuma. já faz uns dias que a primavera começou.

08 novembro 2008

tenho andado distraído



depois do café, olho a janela que não me diz nada. são poucos os dias como esse; dias em que nem o céu parece saber decidir entre o sol ou a chuva. uma vontade contida ou uma confiança que se fez imprópria contróem setas dentro de mim, setas que não apontam, que simplesmente existem, como tantas outras coisas.


desde Laura Féliz que conversas não agregam tanto a mim como essas dos últimos tempos, últimos jantares, últimas preguiças, últimas dúvidas e decisões. calmarias de ser-em-azul, que chegam sem que as tenhamos chamado, que ficam, ficam, que se tornam parte de nós.


tinha treze quando me marquei pra sempre pela primeira vez. quatorze pela segunda. mesma época de Laura Félix, mesma época de André, mesma época de Clarice Drummond Artaud Cazuza e Cartola. mesma época de linhas e caminhos que me deixavam ver o final. desde então, apenas círculos.


poucas vezes me senti tão cansada sem cansar; tão funda sem doer; tão inteira sendo só metade. tenho saudade do ventar, do doer-leve, de Marina, cultivo aqui comigo o buraco das coisas doces devoradas pelas formigas de um tempo que atravessei sem ver. pela primeira vez desde alícia as borboletas voltam a percorrer o meu estômago, meu pulmão, meu pés braços mãos peitos pernas e a mente que ainda nunca dediquei.


me atrai aquela parte livre que passou tempos em casulo, mas não pelo casulo, nem pelas cores que lhe tomaram depois; me agrada o tempo enclausurado sem companhia, sem família, o tempo incluso, o hiatus solitário e doloroso, e cru. me atrai que esse hiatus seja temporário, que os ciclos se completem, que pra ele haja um sentido, uma razão; me atrai que tenha sido silêncio mas que então torne-se música, de melodia intensa e breve; me atrai que encante, que não tenha então raízes, que não tenha então limite, que seja cores. me atrai tudo que é intenso; me atrai o que vai acabar.


já não me dou com mudanças bruscas, já não sou mais da espera pelo dia-de-ser-tudo-para-sempre. mas coração é treinado; sabe entender quando o ritmo muda. sabe sentir quando desperta.

04 novembro 2008

já baixa a poeira nos livros da estante
os olhos de sol fitam rápidos
entorpecendo o peito em poesia

e eu que achava a prudência um dom
deixo-a para os mais bem resolvidos

a mim me basta respirar

03 novembro 2008

ê vinicius

São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecidaE

se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer de tão perfeita

Uma mulher que é como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua

26 outubro 2008

narciso II

eu não sei o que o meu corpo abriga nessas noites quentes de verão. respirar de peito aberto é uma batalha a ser vencida dia após dia, com os olhos livres de buscas pelas verdades absolutas que nunca salvaram ninguém. carrego em mim a culpa condensada de ser a responsável por noventa por cento de tudo aquilo que condeno; e a esperança infantil do dia de cores fortes que haverá de trazer algodões-doces de mudança. há também a calmaria do coração quando me vejo frente a uma compreensão que me faz inumana, inacabada, indestrutível, e a tormenta aguda que me dói apática quando sinto vivo aqui cada sentimento novo - sincero, puro, cru - e que me faz intensa, inteira, impulso. sinto cada vez mais forte o cheiro doce da simplicidade que me chega à porta munida de dimensões que vi uma vez, mas que jamais esqueço; por vezes, entrego-me à preguiça, atrás de qualquer desculpa esfarrapada, e me deixo consumir cada pêlo, pele, parte, por um sol que acabei de conhecer, mas que sou íntima. do amor: quero fundo e crio aqui com o cuidado de uma mãe que acabou de parir - sou toda e inteira dos amores que escolho meus, mesmo que não os tenham escolhido. não me dou à senhora tristeza de aguardar que meus amores percorram o mundo e retornem a mim; sou provedora, apenas, encarando de queixo alto consequências eventuais. da tristeza: deixo vir com a condição de que venha em chamas, tudo que é tem de ser em todo. não me esquivo do caráter cazuza de tudo ou nunca mais, porque há de ser vivo vez ou outra. da coragem: vejo sempre dois ou três passos adiante; não tão perto a ponto de alcançar, não tão longe que possa desistir. da febre: sem ela nao sou. das lágrimas: saudades doídas do sal que adormeceu. do futuro: parto aos poucos a brisa da vontade. pra quando o verão nascer. pra quando chegar a hora.

"A culpa foi minha, chorava ela, e era verddade, não se podia negar, mas também é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar"
Saramago.

05 outubro 2008

é que eu amo o amor dos marinheiros
de adeuses, de despedidas, de cais e porto
mas é que ficaram os dedos no rosto
as mãos dadas, as frases erradas
os olhos fixos
teu olhar, em azul, ainda sussura
.
de bilico.

Eis que

.

agora, todos os domingos, participo em vento e pulso aqui: O Diazepam. A idéia é de escritos diários mantidos por mim, por Manu Salazar, por Mari Cioffi e por Amanda Audi, compondo os íntimos de coração, e pelos brutos Sandoval Poletto, Chico Marés e Fábio Pupo, fazendo as vezes ósseas e avermelhadas. Claro que tal ordem não existe; vamos levando o mundo como o mundo nos leva, olhos abertos e braços dados com o acaso.


.

25 setembro 2008


lembro de uma época, deve fazer uns quatro ou cinco anos. eu já tinha tatuagens. eu costumava visitar uma amiga num apartamento que ficava na esquina da lamenha lins com a visconde de guarapuava. o sobrenome dela é francês. ela queria ser advogada.

acendíamos marlboros vermelhos e abríamos garrafas de vinho ou de vodka e ficávamos assim, penduradas na janela, com nossas saias e nossos grampos de cabelo. discutíamos poesia - todas, as que líamos, as que nunca tínhamos lido, as que nós mesmas nos arriscamos a escrever. falávamos do rock n' roll e de florbela espanca. entendi meus primeiros baudelaires naquelas noites. bebíamos sem saber direito por quê, mas nos completávamos assim. quando achávamos que o apartamento já ficava pequeno em relação ao mundo, saíamos.

uma vez, vimos a rua 24 horas amanhecer. ela passou a noite toda batendo boca com um porco capitalista. eu tomei muitas taças de vinho - era inverno e a rua 24 horas vivia como nós. se não me engano, foi na mesma noite do show cover do led zeppelin ou dos doors. hoje, não é difícil compreender por quê tantas noites em claro me despertaram os olhos para um mundo outro que não este.

feirinhas do largo da ordem, noites em claro com palavras que não controlávamos - às vezes, nem entendíamos. estávamos no mesmo transe que permitia nosso pulsar. numa dessas noites, dei-lhe um beijo.

ontem um recado dela quase passou batido por mim. há tanto tempo que o mundo não é mais claro como aquelas noites - embora as saudades sejam tão compridas quanto. as vidas mudaram e o transe não é mais o mesmo, mas a herança do marlboro adocicado pelo vinho me traz de novo à florbela e a talayer. algum sopro daquelas noites passa ainda por aqui - então eu lembro de um tempo em que a lamenha lins era tão doce quanto ela.

13 setembro 2008

"que ela nunca fora assim, de tanta agonia pura, densa, toda vez que a olhava me parecia prestes a explodir"

03 setembro 2008

resolução de noites quentes ou tudo que sempre quis fazer mas me disseram proibido

....
......
.. .........




vou sair pra ver o céu
vou me perder entre as estrelas

02 setembro 2008





tenho uma hora e dezenove minutos pra viver tudo o que tem aqui


fome, um zunido leve na memória, aquela preguicinha gostosa de acordar sem pressa, prestar atenção no som que vem do outro lado da janela, a luz que vem do outro lado da janela, a estação que vem do outro lado da janela, mas que ainda não entrou. uma ou outra coisa que mexe quando meu sobrinho dá risada ou faz uma descoberta nova lá na sala, porque o mundo já havia acordado um pouco antes, um nervosismo sem remédio quando penso em coração, a ansiedade do fim de semana que amanhã bate aqui, a vontade de enumerar todas todas as vontades pra que nenhuma se perca, porque é isso que fazemos quando não temos nada a fazer, enumeramos vontades e sonhos e ânsias, que são tão nossos, tão nossos, talvez a única coisa que realmente nos pertença e só a nós, e depois abrir espaço pra uma melancolia breve e fina, a melancolia de estar aqui, de ser essa rotina agradável mas viciosa, vira e mexe queremos mudar mas as portas não alcançam. sentir o corpo acordar, esperando mais um dia daqueles que compõe, mesmo sem saber, uma solidez que passa batido mas que está lá. pulsando.


pulsar.



depois, viver o mundo.

28 agosto 2008

II

"Paula,

não sabes o quanto me recrimino por ceder mais uma vez a esse vício amigo da tinta no papel. Já começo assim, a justificar-me, mas tenho bons motivos (por um lado não quero te induzir ao medo mas alguma coisa à qual não sei dar nome me corrói em desejos de te fazer sentir culpada). Desde que paraste de ventar por estas bandas, tenho reconstruído aqui comigo mil versões daquele diálogo escuro e calado que tivemos dias atrás. Às vezes, por falta de uma verdade concreta para se agarrar, meu raciocínio me leva por caminhos confusos e penso que continuas a me tratar desse teu jeito cru só porque precisas de combustível para seguir, e os obstáculos reais dariam trabalho maior. Sou mais fácil. Sabes ler-me. Manipula. O pior de tudo é essa tua consciência, essa tua acidez, essa tua condição de saber quem és e como se portar. Conseguiste (não sei quais armas, quais conceitos, qual a cor que seguem teus argumentos, que são tão incontestáveis quando estás aqui mas que assim que dás as costas ficam tão leves que se perdem no ar, mas aí já é tarde e o coração já se cansou) mais uma vez me botar sem jeitos e não pude mais nada a não ser te olhar de novo com os olhos do amanhecer. Hoje, minha lucidez se faz presente, mas diga-me: que há na lucidez de amiga, que quando se faz necessária de verdade pula sapeca de um lado para outro, nos deixando tontos, e se esvanece no ar? Aí, estou em condição semelhante à essa em que não cansas de me colocar (não confio na lucidez, mas não posso simplemente mandá-la embora, escurraçá-la de mim, botar-me imune - preciso dela ainda, nem que dia sim, dia não, com intervalos compridos, lapsos que preencherei com essa vida paralela que me bostastes nos olhos, mesmo sem querer fazer parte).


serei breve hoje, e cada vez mais, como alguém que abandona o vício aos poucos, consciente das consequências que a vida lhe reserva. não considero mais meus desejos: não há lugar para eles nesse mundo que descobri não ser tão belo assim. ser frágil, podre, verde - mas ser e continuar sendo até que o tempo tenha ficado pra trás e nós, já sem certezas ou dúvidas, virado sopro.


Daniel."





"Sensatez,


tens de parar com isso, meu bem; precisas controlar-te. por um instante, ao sentir em tuas palavras a presença daquilo que vês em mim, quis chorar. não pude. mas não era isso que queria dizer. sinto se minhas lições de cuidado não se fizeram práticas em meu comportamento por esses dias, juro que acordo e anoiteço pensando em atitudes e julgamentos que crescem como pragas ao meu redor. mas sou difícil, não me convenço por pouco, tampouco sou amiga da fatia racional que me faz parte, somos como primas invejosas uma à outra e não unimos forças jamais, mesmo sob reprovação de toda a família.


estes dias passados, discutíamos sobre como as pessoa costumam ter sempre feição próxima à de algum animal. a linha do nariz é a mais comprometedora. em seguida, vêm os olhos. cheguei à conclusão que serias um urso, se bicho fôsses, e é assim que te sinto a presença, embora a ameaça não costume me botar medo. tento, incansavelmente, em frente ao espelho, transformar-me em bicho, mas ora sou peixe, ora morcego. "tola, enganas-te tanto", me disseram. "nem um nem outro, és raposa".


mas não sei porquê caí em contar-te este episódio, talvez mais uma dessas necessidades puras, quase doentias, de fazer-te conhecedor de mim. acho que o és, inclusive - não que seja grande mérito, que de mim não há o que se conhecer. sou reflexo de desejos e vontades (não os meus, os dos outros em mim), e não sei como é que funcionas assim tão sereno, que não te aborreces, não te cansas de mim, não me rasgas em pedaços e me deixas cair desfeita em partes pela pequena sacadinha que te afasta o céu azul.


na esperança de que não te preocupes, que confinuo defendendo contra todos aqueles que criticam os que não sabem ver um palmo à frente do nariz sem antes lhes perguntar se por acaso, algum dia, o quiseram.


Paula"


25 agosto 2008

tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara


um beijo pro caio e outro pro moço que me mandou um recado de lá de fora da outra janela. só fico com pena do pombo correio, que não viu o vidro e quebrou o bico

21 agosto 2008

sangrava sangrava sangrava e aí se fez o corte, doce era o que queria sentir quando pensou no metal frio e surdo, o metal dos olhos e da face, o metal que não se explica, que ninguém tem. chovia como uma nuvem carregada, daquelas cinzas, e mentia tanto, nada que falava era verdade, mentia como quem respirava, leve e sensato, como se fosse pra isso que vivemos e que oras, farás o que se não mentir, afinal, estás aqui e eu também, tanto tu não queres ouvir minhas verdades como eu não quero ouvir das tuas, portanto guarda, diz mentiras, chove em mim, avermelha, quero ver azul. mais tarde, quando tudo alaranjava, ventava sem sentir, vergonha não passava perto, não conhecia, o que é?, atravessou de um lado a outro devagar, no tempo que traduzo como mil anos, mas quem viu nem percebeu, era impossível associar minutos com horas com dias com anos, nada disso faz sentido quando se tem medo, ela sabia mas não quis contar. piscou forte e fez-se mar, era salgada e tinha pó, não era pura, o sorriso vinha quando vinha a dor, apenas, vais dizer agora que não sabes decifrar, céus, tudo isso me aborrece, dói meus dedos minha cabeça meu pescoço minhas veias saltam mas não são azuis, são roxas, às vezes verdes, eu sei, como aquilo que me dá desejo por ser cor de carne, gosto das cores das entranhas, das luminescências, do que é lânguido e do que é vão, disse, ficou branca. saltaram na face mil manchas nos pés mil abismos nos olhos agulhas perdeu de entender o mundo todo porque tinha ido comprar pão, reclamou meia dúzia de vezes da sequência da vida, quero ser velha, velha, quero ser dessa outra espécie cujos olhos me dizem que não há por quê ser agoniada desse jeito e que anda com dificuldade e que perdeu o nojo de tudo porque virou parte desse humanismo que é nojento e podre e mal cheiroso e que por isso não pode reclamar, e mesmo assim sofre e sofre porque entende tudo do mundo e da vida e porque não pode contar pra ninguém, burros, não conseguem ver, e assim cansada rezou um terço e saiu cheirando lírios, ou seriam margaridas, e continuou contando tudo aquilo que não era real e escondeu de todos que não acreditava naquilo tudo, não, imagine, eu, pra mim é tudo sépia. passou por lá mais uma vez como passava todo dia, mandou um oi de longe, jogou um beijo, pegou no ar, ah, se tu soubesses, eu não seria assim torta manca pensa que parece que dum lado do peito tenho chumbo que é pesado e doído de carregar mas que não quebra, não, também não posso deixar cair, já pensou, suspendo com essa dor-só, e seguiu, convencida, passo fundo no barro fresco, fingiu que não era nada, e quando viu já não estava mais ali, e o som era alto e tudo havia ficado pálido então foi só apertar bem forte bem forte bem forte, onde está o metal, aquele metal, pegou do chão, ventou de leve, os lábios em u, ficaria uma bela foto aqui, espalhou a poeira que era dela e era ela e não se deu ao trabalho de juntar, pensou que tudo isso daria uma boa história mas sentia que ninguém ia querer saber, desejou que alguma coisa horrível acontecesse pra que pudessem sentir pena, se auto puniu, que coisa horrível essa de se dizer, menina, mas fazer o que se é o que eu sinto de verdade, mas ninguém precisa ficar sabendo, é, é melhor não contar que quando cansada sonha que venham bombas tiros balas mortes sangue, se lavava em sangue sem ninguém saber e era quando tudo ficava amarelo que todo mundo sabe é a cor falsa mais verdadeira que se pode ver com esses olhos, que servem pra quase nada, afinal, se fizessem direito seu trabalho, se vissem direito, eu não sentia tanta sede de ver tudo tudo e ainda a sensação que depois de ver tudo vou querer ver mais coisa do que se existe, deixa disso, nem existe tanta coisa assim, no fim, bem no fim, vai tudo servir pra nada, nem metal nem vermelho nem velho nem barro, tudo isso vai dar um nó, silêncio, olha com calma, não abre muito o olho não, esse preto ofusca, é muita luz, fecha aqui comigo agora, ela quis dizer mas a voz não veio, chutou dois galhos pisou em outro e foi embora.


soprou um vento forte no quarto imundo
ninguém entendeu
o quarto não tinha janelas.
o cheiro lento que correu
junto com o arrepio sutil
também não tinha explicação.

demorei a entender o cansaço da vida
ele chegou quando eu já não queria
entender mais nada

no quarto sem janelas
morava uma ironia disfarçada de obediência
tão dissimulada que até machado,
meio zonzo,
confundiu com um gato.

18 agosto 2008

Observação Teórica

Guilherme espreguiça-se tranquilamente. Acabou de acordar. A cama é de casal e Guilherme está nú. O quarto tem uma janela grande, de vidro, coberta por uma cortina clara. Uma das paredes está encoberta por uma estante com livros e perfumes. Outra, por um grande espelho na vertical. Há um pôster na parede chamado "The Love Gun". Quatro peças de roupa no chão, três escuras e uma clara. Guilherme está sozinho. O quarto não é de Guilherme.
Pela janela, uma brisa leve traz as primeiras saudações da primavera.

16 agosto 2008




- qual o tamanho do céu?
- não sei. acho que não tem tamanho. não dá pra medir.
- qual o tamanho da lua?
- a lua é grande. dá pra ver daqui. mas é bem menor que o céu.
- como você sabe?
- eu volto pra casa triste todas as noites, sozinho. quando é dia eu não fico triste. mas à noite eu choro. acho que é porque eu presto mais atenção no caminho. quando eu tô em um lugar movimentado, depois que eu me despeço das pessoas, a noite parece maior.
- maior do que o quê?
- maior do que eu.
- você não é tão grande.
- durante o dia, eu penso que sou.




- qual o tamanho do céu?
- qual céu?
- o céu, ué.
- não sei. que pergunta mais besta.
- é que me disseram que o céu não tem fim.
- claro que tem. mas a gente não chegou nele ainda.
- algum dia a gente vai chegar?
- claro que sim. já chegamos na lua, em marte, descobrimos vários planetas novos. algum dia, vamos descobrir todos. e dominar todos também.
- e depois?
- depois o quê?
- o que acontece depois?
- sei lá, ué. depois acabou.




- qual o tamanho do céu?
- não sei o tamanho do céu.
- não quer saber?
- não.
- por que?
- acho que tem coisas que não devemos saber.
- por exemplo?
- por exemplo o tamanho do céu. por exemplo, pra onde as almas vão. o que as crianças pensam. como se mata a saudade. por que pessoas morrem de fome. pra quê existem as lágrimas. o que é que o coração quer. essas coisas.
- não seria mais fácil se soubesse?
- ninguém quer que as coisas sejam fáceis.
- eu quero.
- não quer, não.
- é que se for muito fácil, acaba logo.
- é que se for muito fácil, todo mundo faria. se eu soubesse o tamanho do céu, eu teria dito. e você teria aprendido e ido embora. e eu teria te visto partir. se eu soubesse o tamanho do céu, não estaria aqui agora vendo nos seus olhos, tão de perto, essa curiosidade pura e infantil. se eu soubesse o tamanho do céu, não poderia te amar tanto.
- se eu soubesse o tamanho do céu, te convidava pra um passeio.
- se eu soubesse o tamanho do céu, eu nunca te contaria.




a beleza do samba que dói


"Ah, meu amor não vais embora
Vê a vida como chora, vê que triste esta canção
Não, eu te peço, não te ausentes
Pois a dor que agora sentes
só se esquece no perdão
Ah, minha amada me perdoa
Pois embora ainda te doa a tristeza que causei
Eu te suplico não destruas tantas coisas que são tuas
Por um mal que eu já paguei
Ah, minha amada, se soubesses
Da tristeza que há nas preces
Que a chorar te faço eu
Se tu soubesses num momento todo arrependimento
Como tudo entristeceu
Se tu soubesses como é triste
Perceber que tu partiste
Sem sequer dizer adeus
Ah, meu amor tu voltarias
E de novo cairias
A chorar nos braços meus
"

10 agosto 2008

"Querida Paula,

queria que tu soubesses de uma vez por todas o que se passa. carrego comigo no peito aquele amanhecer vermelho pálido e desajeitado, embora já tenha passado por tentações várias, do tipo esquecer em uma esquina qualquer, atear fogo, rasgar em pedaços, exagerar em narrações para desconhecidos na esperança de que tudo se dissipe. pobre de mim: mal sabia que a partir daquele amanhecer muitos outros se seguiriam, dia após dia. e, senão igual àquele, próximo o bastante para me encurralar as lembranças em um bote que não faz mais do que remar à toa.

perdoe-me se pareço desesperado ou se me muno do exagero para dirigir-me a ti; é que nesse teu jogo tu não deixas abertura pra agirmos de outra forma (sei que deves estar agora com mil argumentos e justificativas e tentativas de convencer-me do contrário; porém, já fizeste de tudo outras vezes, e há de acreditar que examinei cada atitude tua com uma minúcia que jamais imaginei dominar). quero dizer que - e acredito que já podes prever - não vejo explicação outra para isso que praticas sem escrúpulo algum a não ser a imaturidade digna das mulheres belas. aquela imaturidade que teimei por confundir com segurança, mas que confesso: tem efeito igual ou maior sobre os homens. de tudo que tu aparentas (digo nessas palavras porque nunca se sabe ao certo o que é que escondes por trás de certas atitudes: seria possível interpretar-te de mil outros jeitos e por não saber nunca com certeza e pelo medo de fazer de tolo é que você sofre solitária todas as noites: és vítima de si mesma) e para qualquer conclusão me baseio nessas pálpebras que tu apresentas assim com tanto domínio e que nunca estão mais abertas do que tu permites que estejam. acredito eu que essa é talvez a tua parte que mais me põe em fogo e que mais anseio por conhecer.

por fim, encaro com tristeza o rumo que dás as coisas e confesso que tenho andado fatigado desse jogo, mas por algum motivo que não saberia explicar mantenho ainda uma necessidade de correspondência. talvez, para convencer-me da não reciprocidade de tudo. mas apesar de tudo ainda recuso-me a acreditar que não sabes o que fazes e, concluindo assim que entendes da alma dos homens por vezes mais do que eles próprios, peço que entendas também que contra a esperança não há remédio a não ser matá-la.


meu receio se sustenta pelo medo da mágoa,
Daniel."







"Correnteza,

fugiram-me as justificativas. por mais que acredites que não, entendes de mim o mesmo tanto que eu mesma - por isso talvez saibas oferecer aos meus causos um veredicto mais justo do que eu própria poderia defender. contei-te, noutra vez, sobre o discurso de uma cigana que lia mãos que visitei certo dia (permita-me recordar, caso não o possas. tal cigana procurou em minhas palmas indícios de um futuro ou de um presente, e deixou claro que sua integridade não a permitiria de contar-me tudo por motivo de proteção. tudo o que me disse, porém, é que minha vida há de ser curta. não soube explicar se tal fato era o motivo ou a consequência desse meu vício incontrolável pelo impulso: não ouço nada a não ser o coração. e não sei dos outros, mas o meu é um menino levado, mimado e sapeca, e nem eu mesma consigo prever. é tão imprevisível que já acostumamos - eu e minha razão - a precaver próximos passos. paradoxal, tu dirias, e eu concordo. mas é assim que as coisas são e por mais que tentemos, para o desespero da humanidade, não é sobre tudo que podemos impor o controle. e penso que assim continue, querido, ou não haveria mais graça em se viver).

peço, portanto e humildemente, perdão às confusões que trago à superfície, e prometo dedicar-me em pensamentos à estratégias de cuidado maior daqui pra frente. mas me sinto também no dever de reforçar que minha promessa circunda às tentativas e não aos resultados: sou, acima de tudo, humana, e não tenho em pretensão comportar-me diferente. não tive outra escolha a não ser assumir minha natureza escorregadia e não tenho certeza sobre os rumos aos quais isso me levará; talvez seja uma sina essa cousa de não pertencer a ninguém. não se engane, coração: nunca foi meu desejo seguir assim um caminho sem direção. quando menos entendida sobre como as coisas passavam no paralelo do meu peito, sonhava em assumir um sobrenome, um protetor, conformar-me com a felicidade constante e acomodada. me vejo porém cada vez mais distante desse sonho, mas não me meto em encrencas comigo mesma: aceito apenas, convicta de que assim é que se deve ser.


sem cobranças quanto aos seus dias do momento em que ler essa carta em diante, e mergulhada na angústia que sabes traduzir sempre melhor dentre todos os outros, me despeço.
Paula"



09 agosto 2008

estive por aí


encontrei murilo em um encontro forçado num bar, no centro da cidade. murilo me conhecia de nome mas era cru do julgamento que todos os outros fizeram de mim: sabe meu nome, apenas, e quando o nome é tudo é quando a coisa é mais bela e linda porque ainda há tudo (novo) por vir. fui pelas beiradas. entre um ou outro daqueles silêncios constrangedores que se evita mas nunca se consegue disfarçar, falamos da vida, dos sonhos, dos gostos, das cores, das dores, das carnes, do álcool, do vício, dos fortes, das noites, das luzes, dos ventos, das placas, das ruas, das idas, das canções, dos mundos - meu e dele - e de tudo que jamais caberia numa noite só não fosse a sensação de que tudo era sonho e ia acabar assim que o coração retomasse o ritmo.

assim como a noite, que zombava cínica de nós dois, estranhos de nós mesmos naquele espaço de tempo (fantástico que o mundo seja desse jeito, grande e grande e mesmo assim eu tenha tido a delícia de dividir ali o mesmo pedaço de mundo contigo) os copos tinham vida e iam e voltavam e multiplicavam-se sem que pudéssemos fazer nada. eu não podia.

murilo falava e eu falava em resposta. pelo segundo ou vigésimo copo, não me lembro bem, pensei que não havia mais ninguém no mundo que eu poderia querer que estivesse ali no lugar de murilo. o mundo era grande, eu sabia; mas aquele bar era pra mim toda a parte de vida que me interessava.

o amor não tinha nada a ver com aquilo.

fomos dormir quando o sol chegou, acordei com as mãos formigando e o peito em azul. demorei a fugir do braço esquerdo de murilo (que era pequeno, mas o peso daquele braço tinha força igual ao meu medo de viver mais uma vez).

não olhei pra murilo. deixei um bilhete:
peço a gentileza de esquecer.


07 agosto 2008

não dá tempo pra mais nada a não ser falar da agenda

7h sem café porque dá úlcera
8h30 jornalismo opinativo na floresta
10h pegar cem quilos de xerox pra ler com pipoca no fim de semana
10h10 matar aula ruim de comunicação, sociedade e cultura pra fazer a rescisão da carteira de trabalho que tá atrasada há dois meses
11h fazer as unhas porque eu também sou filha de deus
12h comida é vida, minha gente
12h30 fazer cópia de documentos sigilosos para uma reportagem
(mwahaha)
13h trabalhar
17h passar no politécnico e nas mercês, pegar a Rê e tomar um café
19h reunião de pauta, sofrer
21h festinha alcoólica de comunicação
21h01 xingar os bafômetros da cidade e a Lei Seca
23h30 sair sóbria da festinha pra ir pra outro lugar e continuar sóbria porque se dirigir, não beba. amar isadora e renata durante a noite

25 julho 2008

em 1984, no circo voador, alguém diz

agora é hora de enxugar as lágrimas e voltar pra sacanagem!, que é muito melhor


benzinho, eu ando pirado. rodando de bar em bar, jogando conversa fora, só pra te ver
passando, gingando, me encarando, me enchendo de esperança. me maltratando a visão


girando de mesa em mesa
sorrindo prá qualquer um
(filha da puta)
fazendo cara de fácil,
jogando duro com o coração

24 julho 2008



, dizendo que sabe que eu aceito com força a tudo que aparece: problemas que não pedi, ofertas de desafio, homens que não conheço. que, além de queimar minha alma com as retinas, quando ajo como uma desvairada, louca, tonta, é que me quer inteira e nua de razão, ali onde degolaram os ladrões nouta vez. nem ligo, dou risada, cuspo nos cabelos, mas me aquieto depois. bebo o que me oferece e engulo junto o choro, numa quina de paredes frias.

, que foi onde comecei, pouco a pouco, minha coleção de dias, transformados em palitinhos, finos como eu, mas assim também como eu, pontiagudos e afiados. por vezes, meu palitos cronológicos furavam até meus pensamentos, mas essa época passou, não volta mais, então eu respiro, pego outra parede, ponho-me a desenhar mais palitinhos (trapaceio, às vezes: desenho mais de um palitinho num mesmo dia, que é pra fazer o tempo correr mais depressa).

, aquela mesma, que vem sempre aí. pobrezinha, nem desconfia que depois do quarto é só pó, um travesseiro que quase contra a vontade guarda o cheiro azedo de um perfume sem nome, uma escova de cabelo de metal azul e um tapete. se fizer silêncio, escuto seus gritos. mesmo intensos, são leves, e a imagino assim, de maçãs rosadas e pés descalços, e finjo sentir o mesmo que ela sente, esse sentir que vem lento, e forte, e quando dou por mim estou deitada e pobre e a cabeça dói, e tento me recompor, olho em volta, ninguém viu, mas a vergonha não é dos outros, é de mim mesma, a única pessoa pra quem eu devo alguma coisa

, a não ser ele, que me dá de comer e de beber, é uma boa pessoa. quando fico triste porque penso que vou sangrar tudo que tem em mim, ele aparece, me manda perceber o quão sortuda sou por ter ele ali, comigo, pra me dar um teto e o que vestir; então agradeço, jogo-me aos seus pés e beijo com força de gente que é louca todas as partes do corpo que ele tem, e é quase sempre quando ele também põe-se louco à minha frente, mas como sou gorda e baixa, e ruiva, meu grito não é leve, é um grito grave, pesado, e acho que não gosta muito, porque logo sai, e torno a desenhar palitinhos na parede e enrolar os fiapos do tapete, até que o sol volte pela fresta da quina, a quina que é fria e dura, mas que é minha, minha como algum dia nessa vida ele vai ser meu, vai ser, sim

23 julho 2008

aliás


nunca estive tão cazuza



migalhas dormidas do teu pão
pequenas porções de ilusão
teu corpo com amor ou não
mentiras sinceras me interessam
faço promessas malucas
tão curtas quanto um sonho bom
se eu te escondo a verdade, baby
é pra te proteger da solidão
é que eu não amo ninguém
parece incrível
não amo ninguém
e é só amor que eu respiro

16 julho 2008

apelo de um saco que já encheu



a partir de hoje, não se conversa com niguém. a partir de hoje, se mede toda e qualquer ameaça de ação, de beijo no rosto, de abraço apertado. se reprime qualquer vontade de palavras carinhosas. o olhar dirigido a presenças masculinas está terminantemente proibido (não importando o nome, o endereço postal, a idade). não se pode rir, não se chora mais. a partir de hoje, as mãos só apertam as mãos íntimas, os olhos só conversam fechados, o corpo não encosta mais em ninguém. a partir de hoje, tudo é feito com equilíbrio, tudo é medido para caber nas conversas, não se usa mais perfume, não se passa mais a mão no cabelo. a partir de hoje, nenhuma conversa é feita a partir do mesmo nome, nenhuma vida existe dentro daquela vida, nenhuma vontade é realizada, tudo é deixado pra trás. o amanhã deve ter na bandeira as palavras: que se foda a intuição, o desejo, a sinceridade! que se encarnem em todos os robôs da rotina e que mandem embora o mais depressa possível o impulso terrível de se ser humano.

e que sejam amaldiçoados todos aqueles que, como eu, têm nas veias sangue vermelho e nos olhos o impulso de viver. que definhem todos os que têm fome, que morrem de vontade, os que secam de desejo, os que ardem. porque as veias fracas e os olhos pálidos daqueles que não vivem não suportam a visão da vontade; aprisionam-se entre bons costumes e descontam nas línguas as vontades do corpo que a mente não obedece. e amaldiçoado também seja aquele que disse que inútil dormir que a dor não passa; aquele que insistiu que a vida é feita de se agir duas vezes antes de se evocar o pensamento. aos outros, só peço que vão é esperar a vida passar na frente dos olhos, criaturas burras: assim, poderão falar dela também, ocupando muito mais a língua do que o coração atrofiado. se meu instinto não é bem visto aqui, devo mesmo é me aquietar e ir viver na luxúria e na agonia calma e quieta das mulheres de chico, de adriana e de vinicius, aqueles malditos promíscuos, indignos dos bons costumes de se viver junto aos 'normais'.



08 junho 2008

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to me
show details
1:23 pm (2½ hours ago)

i am having my graduation party in a couple hours today, should
be a blast. Yeah i have a couple photos of the new bike, i will take some pictures today of the party and the bike and send them out to you some time this week. do you remember that night, i had got graduate two days before. you should be here for party. zack and i went up to NH house and we sorry you missed snowmobile that time. dont get me wrong, its a sweet warm weather but at this time i could just wish for winter.
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07 junho 2008

entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta

new hampshire, 2008




carta ao frio

já faz um tempo que a vontade de escrever é desviada por qualquer distração. como dar forma a palavras quando mal se consegue respirar? não lembro de outra vez em que me sentisse tão bem entendida sobre pensamentos, opiniões e ideais palpáveis; as coisas que se passaram foram suficientes para mostrar que os sentidos são relativos: cada um, à sua maneira, tenta construir para si o universo que sempre desejou. o que muda é a coragem.
num canto, alguém que vive no passado (alguém que comete o mais comum dos erros, alguém engolido pela nostalgia de outros tempos, como quando a gente vê um álbum de infância e pensa "eu era feliz mas não sabia", e recusa o resultado inevitável de que aquele álbum já passou e não volta mais, e se naqueles dias tudo funcionou como deveria não é por isso que funcionaria hoje, e que, por mais que pareça, o passado não era assim tão feliz, mas sim a idéia de passado: um esconderijo escuro que a coragem abandonou).
em outro canto (são quatro), alguém em uma bela realidade, sofrida e bela, e em harmonia perfeita entre idéias e sentimentos. alguém assumido. mas a harmonia é do tamanho do risco: a humildade vai se perder.
em terceiro, um coração batido e cansado, que rodeia enquanto pode e dá voltas e mais voltas em torno da mesma crítica de mundo duro, injusto e opressor, aquela mesma crítica de tudo e todos, aquela mesma crítica comedora de sorrisos, que se infiltrou no coração batido de um jeito que tudo em volta parece pesado, e triste, e indigno de ser.
por fim, uma idéia cansada de ser idéia, uma idéia que já foi contra o mundo e a favor dele; hoje, apenas vive. uma boca que já foi calada demais, falante demais, e que acabou escolhendo por se dar a chance de mostrar os dentes em um sorriso sem ameaça. uma paciência que acabou, que vem regredindo sob certo ponto de vista, que largou mão da busca pela inserção e que ignora o pensamento fatalista, assim, simplesmente.
assim, um bater leve de dedos em um teclado desgastado, pedindo humildemente por uma renovação, qualquer que seja ela. a janela aberta vai sempre trazer uma esperança branda, cada vez mais branda, e mais sólida, por consequência. meu doer novo vem ficando amigo e em reverência eu agradeço, mas não sem a oração: dessa vez, que seja firme.

21 maio 2008



you know how us, Catholic girls, can be. we make up for so much time (a little too late). I never forgot it, confusing as it was: "no fun with no guilt feelings" [the sinners, the saviors, the loverless priests - I'll see you next Sunday]

we all had our reasons to be there, we all had a thing or two to learn.
we all needed something to cling to.
so we did

[I sang Alleluia in the choir. I confessed my darkest deeds to an envious man. my brothers, they never went blind for what they did -but I may as well have]



in the name of the Father, the Skeptic and the Son, I had one more stupid question

what I learned, I rejected, "but I believe again", I will suffer the consequence of this inquisition (If I jump in this fountain, will I be forgiven?)


we all had delusions in our head, we all had our minds made up for us. we had to belive in something.
so we did




11 maio 2008

antônio ou de tudo que eu não conheço



aquele velho amigo doer deu lugar a um outro. um outro que ainda não conheço o nome, mas que está aqui há tempos, eu sei. aquele velho doer despediu-se rápido e grande em intensidade e em agonia, mas já passou. ventou apenas, como tudo e sempre.
esse doer novo não me é amigo, ainda, mas não tenho medo algum de conhecê-lo. é cria minha, e conhecê-lo seria assim como olhar no espelho. o vejo todos os dias, nos sonhos, no vidro, na rua. esse doer novo me parece mais calmo e mais sensato, embora forte como não tinha ainda visto. parece, também, que esse doer sabe mais de mim que eu jamais soube, e me protege. ele tem uma finalidade, posso sentir; portanto, momentâneo.

poderia chamá-lo doer-de-mudar, mas não sei falar com propriedade de uma mudança que está por vir - mudanças são instáveis e guardam remorso. poderia chamá-lo doer novo, mas são tantos novos e sempre mais que perderia a conta estalando os dedos. poderia chamá-lo doer forte, mas seria preciso testá-lo antes, e não posso seguir assim, com um doer desnomeado, um doer que não posso chamar quando preciso, um doer desconhecido de tudo. decido, então, por Antônio.


meu doer novo tem um nome.


01 maio 2008

Sobre a agonia de ser quem é


No fundo, é tudo sobre essa coisa — essa coisa sem-nome, esse monstro interior, que me come por dentro, dilacerando cada parte de mim que tenta tão desesperadamente se identificar. Esse sentimento constante que aparece aos poucos, e cada vez mais forte. Que me faz pensar e pensar e pensar, mas me impede de decidir a direção. A correnteza que me leva é intensa e forte e não poderia jamais duvidar sua existência. Ela não tem rosto. São só mãos, e dedos, e o tremor das pernas. E só.


Escrever passa a ser, então, o cano de escape por onde corre toda a dor. Um cano sem saída, sem desembocar, um cano em circuito, com joelheiras fracas, e vez ou outra vaza tudo, e demoro dias e dias no reparo, um reparo que é sem cuidado, sem vontade, um reparo que agoniza junto comigo e com tudo que guardo aqui. O mistério, então, se perde, e de repente acabo por ficar cada vez mais clara, mais rasa. Menos honesta.




A poesia dá lugar a palavras fáceis, que não dóem a mais ninguém a não ser eu. Escrever para os outros vira o escrever pra mim, e num paradoxo sem certezas as palavras superficializam a agonia, e tudo acaba em uma verdade sem graça, uma verdade comum. Que o mundo não passa de uma verdade comum. Que a verdade não passa de um oásis em miragem, que não existe. O deus ao qual nos agarramos pra poder fechar os olhos. Os olhos que a minha correnteza não possui.



Como as mil classes que deixei passar, como os quadros da minha infância, os peixinhos em forma de oito, as cores contrastadas. As fotografias que eu não mostrei pra ninguém. O espetáculo que eu trouxe ao dia a dia, mas não ao palco.

Metáforas são armaduras para quem não pode afirmar nada.



E em determinada esquina, me transformo em algo que não leva ao fim nem a xícara de café. Que, antes que ela termine, me explodem mais mil vontades, pesadas, pesadas, impossíveis de carregar. Um câncer. Um apodrecer que toma tudo em volta, aos poucos, e eu posso assistir ao desespero de mim mesma com as mãos atadas, uma corda que está lá sem existir. As pernas, então, tremem. As mãos apontam mais direções do que essa dimensão permite, mas não há uma cara para a qual eu possa olhar enquanto a mando tomar no cu.



Escrever passa a ser sentir tudo em dobro. Reviver cada sentimento. Artaud. Baudelaire. Goethe. Estar aqui passa a ser Adriana. Amar em canção a tudo que agoniza, assim como eu. Mas a agonia não está no coração, na sede, no desejo. A agonia está no amarelo pálido da parede, um amarelo que eu odeio, mas não vai se tornar vermelho até que eu o pinte. E pintar essa parede não é — a corda que não existe.



Levanto os olhos, finalmente. Existe um vão tão grande entre a janela e aquele mundo que há lá fora, um mundo pequeno, é possível segurá-lo. Dentro dele, mil faces, mil amores, mil artes diferentes, todas palpáveis, possíveis, mundanas. Dentro do mundo, eu, Adriana, cordas e mais cordas, e facas e fósforos, parados, em pó, à espera.



Engolir as dores dos outros, dores transformadas em páginas — assim como as minhas, cada uma de minhas dores são mil, três mil letras, que descansam exaustas em um espaço que não existe, não posso tocar. Minhas dores então já não são minhas, são de ninguém — e trazer companhia à coisa sem-nome, conforto ao desesperar, mas não traz direção a correnteza alguma. Ao invés disso, aumenta o volume, arranja outro desembocar (não o meu, o dos outros em mim). Que me dá vontade de estapear a cara que não existe, chacoalhar seus cabelos, para que pare. Estapeio o que não existe. Percebo, sem nenhuma emoção nova: não vai parar.

 

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