30 agosto 2009

eu bato o portão sem fazer alarde
eu levo a carteira de identidade
uma saideira, muita saudade
e a leve impressão de que já vou tarde

chico

20 agosto 2009

quando andré falou da fugacidade das coisas eu entendi, porque não havia uma só coisa que andré dissesse que eu não sentisse em mim mesma. nunca fez parte de mim querer falar de andré, parecia um pedaço de mundo maculado, uma grande mancha vermelha em cima de todas as coisas que falávamos porque sempre nos vinha à memória aquele convite que me fez quando mal nos conhecíamos. decidimos que seria bom sair pra conversar, nós e as cervejas, haveríamos de nos preocupar com elas, seriam a desculpa eterna de todas as coisas que aconteceram aquela vez, os vários copos enchidos em sequência e engolidos a seco porque estávamos puros e inocentes em meio a um grande e enganoso desconhecido. como se o tempo tivesse sido cortado em dois e a próxima cena descrevesse o quarto de andré, um silêncio que não nos incomodava e as botas que eu não quis tirar antes de me deitar e cair no sono. não sei se andré dormiu, não sei nem ao menos por quanto tempo estive ali, frágil e entregue à delícia de um sonho embriagado, mas eram seis e alguma coisa quando um relógio digital iluminou meu rosto dizendo: "é hora de ir embora". assim como de alguma forma eu estava lá, naquela cama desconhecida, num repente estávamos nos despedindo, tão inocente como "obrigada pela companhia". e assim por cinco anos me mantive imaginando a fugacidade das coisas pra só hoje perceber como é tudo tão perecível - um chocolate meio amargo, um entardecer de cor lilás, uma arranjo de flores, o carinho de um amigo. as coisas pertencem todas a uma sintonia e é preciso acompanhá-la, abandonar os perecíveis quando esses começam a malcheirar. o engano todo, todo o desespero reside no esforço de tentar (anotemos, sempre em vão) manter vivo aquilo que já adoeceu. aprendemos nos filmes livros músicas que das listagens das coisas que nos transpassam há de resultar um saldo e aquilo que resulta positivo é aquilo a ser guardado na lembrança das coisas que morreram - aquele passado que nunca existiu. se andré me perguntasse hoje (não perguntaria, andré é alguém eternamente ressentido, por vezes comigo, por vezes com o mundo) de quais bebidas não provaria, eu responderia apenas que provaria todas novamente porque as mais doces haveria sempre de querer provar, e as mais ácidas - bom, as mais ácidas - elas me arderiam o paladar com o intuito único de provar-me viva. hoje chove uma chuva escura, mas eu pulso. estou viva. curioso que sobre andré quero sempre falar da fugacidade. vai ver é porque andré é exceção à regra: andré permaneceu.


nesses dias em que chove por dentro, me distraio em botar lado a lado os dois pés na borda da janela. é um bom exercício quando se está no limite, as paisagens verticais jamais me foram tão distintas (horas passam sem que eu consiga discernir qual é o lado que a chuva molhou). disciplinada, não desvio o olhar: retinas aguadas fixas entre um ponto e outro, poderia dizer que representariam vantagens ou desvantagens, ou até mesmo estratégias, pontos de vista, mas não: minhas paisagens são nada mais que paisagens, desvios de atenção, e nada me dizem - trazem apenas, com a doçura pueril de quem presenteia rosas brancas, a distração de minhas horas-mortas - como disse nada mais que paisagens, assim como eu que sou nada mais do que eu mesma.
quando me canso, dobro feito equilibrista e alcanço as palavras que priscilla me deixou muito tempo atrás, como se previsse ou qualquer coisa assim, priscilla sempre teve tantas coisas que eu nunca soube explicar. me apóio no duelo entre a janela e a cidade (já não me sinto atraída, canso fácil. por agora e de retinas fatigadas vejo apenas priscilla, seus cabelos curtos, sua alma clara, o rosto iluminado sem razão, priscilla nem ao menos era bonita, tinha assim umas olheiras roxas fundas e não usava nem um mínimo de pó-de-arroz, nem aquele tantinho que as meninas passam nas bonecas pra que essas lhes pareçam menos mortas e aterrorizantes, priscilla era dona de uns lábios carnudos que de tão grandes se rachavam inteiros e por vezes priscilla sangrava e era como se ela tivesse assim tanto sangue correndo, um sangue espesso, que não cabia nela - ela que era tão miúda e pequenina - e precisava jorrar pra fora alguma coisa daquele sangue, e devia ser isso mesmo porque lembrando agora priscilla sempre passava a impressão de estar sufocada, embora essa impressão acabasse invariavelmente perdida no encanto dos olhos tão doces e negros de priscilla) e passo a recitar em voz alta os versos favoritos que sublinhei em tom lilás: "saí; fui segurar o vento pelas pontas", ou "hoje quando acordei tomei um chá de alecrim sentada na varanda folheando algum livro meu e fui ficando assim meio idílica e então prendi os cabelos de um jeito quase épico e fechei os olhos para sentir melhor aquela completa ausência de mim", ou ainda aqueles que requeriam um pouco de conhecimento de priscilla (conhecimento que nunca tive, priscilla e eu nunca fomos apresentadas), como esse: "por enquanto, clarice e eu não nos amamos".
dependurada na janela, na ponta dos pés entre a haste de metal e os empoeirados azulejos do tanque de lavar, leio priscilla enquanto sei que indisponho um ou outro nome da estante de livros. porque éramos nós apenas (havia até um pacto selando fidelidade para a orgia à qual havíamo-nos entregues eu, vinicius, drummond, baudelaire e clarice), como nas cinco pontas de uma estrela, e priscilla havia invadido assim sem mais nem menos e agora eu via a desordem e seria por certo deselegante que qualquer outro pudesse ver-me agora, entre a janela e a cidade, suspensa apenas por aqueles grandes olhos doces. eu nada poderia explicar: era o instante de ser fiel apenas a meus pés.

Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada.


caio

17 agosto 2009

os ombros suportam o mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


c.d.a.

11 agosto 2009


0300

quanto barulho na noite dos insatisfeitos. os carr
os acelerados, os aviões, os pequenos estralos vindos de fora, a prova audível das coisas que se movimentam no contraste cínico e incolor entre a euforia obediente e qualquer coisa que não sejas tu mesmo. pensamento inevitável a procura por aquilo que falta, e o saldo bruto do que já passou sussurrando leve que contra o algo de ausente não há de haver guerra, mesmo embora o argumento não dure mais de três segundos.


0314

parece coerente ao ás a capacidade de ganhar ou de perder de todas as demais cartas do baralho


0457

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",
"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",

"um estômago que trabalha em falso acorda cedo",


0728

uma balança deve ser suficiente para a mesura de todo tipo de índices e, ainda que nada mais que isso, tornar óbvias as diferenças: números (datas valores quantidades casas decimais) pesam muito mais que uma ou mil ausências [
ausência: subst f. [aw'zẽsjɐ]
exiguidade, falta, escassez, pouquidade]

1153

em toda casa onde há janelas de vidro há agora (ou ainda antes) uma parte trincada sem que pedras viessem para trincar. ou galhos ou pequenos acidentes envolvendo pés de cabra. não caberia ao vidro transparecer tão fielmente a vida que tenta entrar; ou ainda há a parte para que não se esqueça dele [o vidro] a presença.

1410

regras de civilidade: oi, olá, boa tarde, como vai, como está seu dia, como andam as crianças, e aquele assunto, resolveu?, e aí, hoje há sol, precisamos combinar alguma coisa, aparece lá em casa, traga mulher e filhos.

2042

há algo de perecível nos pratos de qualquer balança e se permite dizer parece ser o algo errado

2337

a possibilidade de tornar, em acréscimo às funções básicas primordiais (comer sozinho escovar os dentes discernir o lado certo da camiseta amarrar os cadarços se eu tinha três laranjas e joãozinho comeu duas quantas me sobrou?), fazer nota de todas as palavras lidas e frases ouvidas ao longo de um dia inteiro e, junto ao copo de leite que traz o sono dissolvido, contabilizar e agregar cada núcleo em, no máximo, três categorias a serem definidas particular e impulsivamente. ao fim de cinquenta anos, dissertar sobre o porquê do segundo advérbio ser lido, quase sempre, com sentidos de revés.

06 agosto 2009


"E eu ainda sou bem moça pra tanta tristeza ...
E deixemos de coisa, cuidemos da vida
Senão chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moça
Sem ter visto a vida"
 

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