20 agosto 2009


nesses dias em que chove por dentro, me distraio em botar lado a lado os dois pés na borda da janela. é um bom exercício quando se está no limite, as paisagens verticais jamais me foram tão distintas (horas passam sem que eu consiga discernir qual é o lado que a chuva molhou). disciplinada, não desvio o olhar: retinas aguadas fixas entre um ponto e outro, poderia dizer que representariam vantagens ou desvantagens, ou até mesmo estratégias, pontos de vista, mas não: minhas paisagens são nada mais que paisagens, desvios de atenção, e nada me dizem - trazem apenas, com a doçura pueril de quem presenteia rosas brancas, a distração de minhas horas-mortas - como disse nada mais que paisagens, assim como eu que sou nada mais do que eu mesma.
quando me canso, dobro feito equilibrista e alcanço as palavras que priscilla me deixou muito tempo atrás, como se previsse ou qualquer coisa assim, priscilla sempre teve tantas coisas que eu nunca soube explicar. me apóio no duelo entre a janela e a cidade (já não me sinto atraída, canso fácil. por agora e de retinas fatigadas vejo apenas priscilla, seus cabelos curtos, sua alma clara, o rosto iluminado sem razão, priscilla nem ao menos era bonita, tinha assim umas olheiras roxas fundas e não usava nem um mínimo de pó-de-arroz, nem aquele tantinho que as meninas passam nas bonecas pra que essas lhes pareçam menos mortas e aterrorizantes, priscilla era dona de uns lábios carnudos que de tão grandes se rachavam inteiros e por vezes priscilla sangrava e era como se ela tivesse assim tanto sangue correndo, um sangue espesso, que não cabia nela - ela que era tão miúda e pequenina - e precisava jorrar pra fora alguma coisa daquele sangue, e devia ser isso mesmo porque lembrando agora priscilla sempre passava a impressão de estar sufocada, embora essa impressão acabasse invariavelmente perdida no encanto dos olhos tão doces e negros de priscilla) e passo a recitar em voz alta os versos favoritos que sublinhei em tom lilás: "saí; fui segurar o vento pelas pontas", ou "hoje quando acordei tomei um chá de alecrim sentada na varanda folheando algum livro meu e fui ficando assim meio idílica e então prendi os cabelos de um jeito quase épico e fechei os olhos para sentir melhor aquela completa ausência de mim", ou ainda aqueles que requeriam um pouco de conhecimento de priscilla (conhecimento que nunca tive, priscilla e eu nunca fomos apresentadas), como esse: "por enquanto, clarice e eu não nos amamos".
dependurada na janela, na ponta dos pés entre a haste de metal e os empoeirados azulejos do tanque de lavar, leio priscilla enquanto sei que indisponho um ou outro nome da estante de livros. porque éramos nós apenas (havia até um pacto selando fidelidade para a orgia à qual havíamo-nos entregues eu, vinicius, drummond, baudelaire e clarice), como nas cinco pontas de uma estrela, e priscilla havia invadido assim sem mais nem menos e agora eu via a desordem e seria por certo deselegante que qualquer outro pudesse ver-me agora, entre a janela e a cidade, suspensa apenas por aqueles grandes olhos doces. eu nada poderia explicar: era o instante de ser fiel apenas a meus pés.

2 comentários:

Bruno Jugend disse...

Priscilaba.

Priscilla Menezes disse...

me encontro e me estranho. mas achei bonito.

 

© 2009foi por descuido | by TNB