02 julho 2009

noite

não alimento nenhum sigilo, dou cria a obviedades cruas na luxúria das rotações. de onde estou vejo quatro paredes e me disponho em confronto a todas elas, mórbida e ansiosa. pela manhã mal podia respirar: a ameaça de tantos mais segundos. permanência. por um instante sinto em carne a fugacidade das essências e as vejo percorrendo membranas lúcidas do passado. as horas são leves mas trazem coisas pesadas - e agora estou à beira, o corpo treme, os olhos fixos, o silêncio perturbador do reconhecimento.

noite

vestida em coragem eu vou, deixando marcas de sangue e água por onde passo. transbordar: não há a quarta parede e o público interpreta os olhares que despencam sobre ele sem qualquer preocupação. noites nuas sob um céu sem fim, confissões em sussurros e o desejo intrínseco da carne surgem das estampas floridas e seguem dançando durante toda a noite e meu corpo treme sem controle, obedecendo mais às urgências da alma. inédito, o perdão não é invocado e ficamos a assisir a turbulência das reações das chamas de uma honestidade que é queimada sem arrependimentos, e cuja dor é sufocada pelos falsos ideais de qualquer coisa dolorida e infiel. penso-o como é pra mim mas escorrego pela translucidez de um carinho empoeirado. mais que espelho são seus olhos, e para eles me ponho rasgada e ácida. ser de extremos e não prometer nada nunca além do meu pior.

noite

o calor de um sol noturno faísca meus desejos e volto à outra madrugada, quando via-o dormir e meu corpo não pôde outra coisa que não acordá-lo em gota. rasgar a carne e dá-la inteira e insensata, passada a ferro, despida dos ideais imaculados, porque só assim seria vã suficiente. pra sentir-te inteiro. pra conhecer de ti a única faceta verdadeira de teus múltiplos lados dóceis e infantis. pra dar-me sem raciocínio à similitude e ao doer. pra colocar em torno de nós uma manta que nos fizesse cúmplices, sadios em nós mesmos, confusos entre braços e pernas e vontades. pra se aprender do incontrolável e do inocente. pra nos dar o único rascunho de sincero que nos foi possível em tão pouco tempo.

noite

mantenho-me em mim e não me permito a invasões. passeiam por meu corpo as dores sempre bem vindas e assisto em busca de concretudes. não há nada em volta. a ignorância vêm de mãos dadas com a perda e o desencantamento, me ponho quieta e escrevo. para ninguém.

noite

da janela vejo o nascer, o estar e o pôr do sol. ignoro o momento da perda e adio a decisão já tomada, sabendo da maldade da esperança e mesmo assim à mercê de toda ela. são poucas luzes coloridas e o som dos aviões me invadem como se fosse eu própria levitar agora mesmo. se na esquina no bosque na rua no topo do mundo te encontrar, vou dizer meu amor me deixa meu amor, que tudo ruiu foi por tão pouco, que deixei invadir penetrar macular me perdoa meu amor que não fui boa nem suficiente nem fragmentada, meu amor se te gritei foi porque não cabia e só, se rasguei ou arrastei o mundo nas costas me perdoa, se deixei cair pelo caminho se pisei em cima e se por acaso ele rolou meu amor, me perdoa se não pude permanecer ao fogão ou limpar melhor a tua casa ou arrumar melhor a tua cama ou se não acertei no livro na música no tempero, meu amor, me perdoa se não coube nos teus pequenos sonhos nos teus pequenos ideais, meu bem, me perdoa por não ter dançadoa tua música fechado as janelas ou aceitado tantas palavras que cheiravam mal meu amor, me perdoa, por ser assim inteira dura por dentro consistente e romântica e me perdoa meu amor por ter acreditado na sinceridade da carne do desejo da coragem, meu bem, me perdoa eu vou embora eu não volto mais eu não passo mais aqui eu vou embora meu amor

noite

uma vez era manhã e eu disse "quando eu me apaixonei", sabendo que essa pequena frase ia fazer inundar uma ilha do outro lado do mundo. deviam ser passarinhos lá fora, havia também uma cidade vazia e uma chuva fina acontecendo, eu não via mas podia sentir. disse assim para ele, em discurso direto mas livre de mim mesma, como quem assume uma coisa em terceira pessoa. ele abriu os olhos e eram olhos pesados doentios, e seus lábios tremiam com medo de que eu tivesse dito humilhada, mas eu previ e disse que não. disse "quando eu me apaixonei, eu sabia", disse que sabia mas não quis dizer que nunca acreditei. os olhos continuaram pesados e doentios e eu fui até o espelho, na esperança de descobrir quem foi que havia dito aquilo.

1 comentários:

Jean Stedile disse...

poético como um efeito borboleta.

 

© 2009foi por descuido | by TNB