20 maio 2009

disse que havia um livre arbítrio impedindo seus desejos e que por isso precisou partir. algumas horas antes cecília sentava em um meio fio de gelo e tirava da bolsa um livro de george lukács, qualquer coisa sobre a estética. por quinze minutos leu compenetrada, mas teve que parar pra ver se a temperatura do yakult já havia molhado o papel de presente vermelho do pequeno pacotinho que guardava nas mãos. era difícil voltar a ler quando passavam tantos carros, tantas pessoas, todos olhando pra ela, o que é que essa menina faz sentada aí no frio a uma hora dessas, ela não tem medo, não, ah, os dias de hoje andam tão violentos. pensou que todo mundo entenderia caso viessem perguntar. por meia hora lembrou de todos os passos anteriores (havia uma carta curta, coisa pouca a se dizer, consistia em uma lista das coisas que faziam dela a menina mais legal do mundo, ou qualquer coisa. a carta foi antes da tirinha de mafalda deixada à vista, da referência a um filme do almodóvar e dos pequenos trechos de clarice e de meirelles soltos a esmo. disse que clarice porque é a medida intensa de todas as coisas e que meirelles porque é sua xará, de nome e de alma) mas o frio escondeu da memória as quase duzentas palavras coloridas (havia também passado dois dias inteiros escrevendo em papel colorido todas as palavras doces das quais podia se lembrar; tranquila, ia de coragem a tardes de sol, de viagens a pequenas surpresas, do medo ao sorvete de domingo, cortou tudo em pequenos quadradinhos e juntou em um barbante fino, cor por cor, pra que aquele tanto de coisas boas ficasse mais colorido que pesado, que era como estava seu coração. amarrou no retrovisor do carro e não pediu resposta) e o recado da última noite que era algo de desespero e aflição porque havia chegado perto o cheiro do fracasso, do pecado sem sentido, do limite que passou.

quando entrou na segunda hora já precisava cantar pra amortecer o frio e esfregava as mãos bem juntinhas, uma à outra, na tentativa de fazer parar o corpo que tremia em desafino com a vontade. tentou enganar o porteiro do prédio, que a cada quinze minutos aparecia do lado de fora, como que pra vigiar se ela continuava ali, à espera, e porque é que não esperava no saguão de entrada, então, já que está tão frio. e cada vez que ele aparecia ela se inclinava para trás de um dos carros estacionados - se fosse vista alguém poderia se zangar. brincaram de gato e rato por mais algum tempo até que o porteiro pareceu entender que a guerra já estava vencida e voltou pra dentro, conformado, não queria ele pegar também uma gripe, já tinha bastante com que se preocupar. ensaiou dois ou três diálogos, embora soubesse muito bem que as palavras sempre acham lugar seguro pra se esconder quando são procuradas, foi buscar no fundo da memória duas ou três daquelas lembranças que trazem calafrios e cantou uma ou duas músicas mais, que foi quando o relógio denunciou as duas horas e meia de espera e que o frio passou de repente porque também de repente veio do outro lado os faróis que o coração reconhecia, mas que, desavisados, passaram por cecília e cecília sentiu como se fizesse parte da noite e da escuridão.
disse que por favor, rapunzel, aparecesse na janela, e de repente oito minutos passavam escorrendo como cera de vela fria, muito mais lentos e danosos do que os outros tantos minutos, recém completados, mas pertencentes agora a um passado esquecido, amortecido, medíocre de si. resignada e mais fria que o sereno, seguiu até o porteiro (que era ao mesmo tempo cúmplice e inquisidor) e disse sem rodeios e de uma só vez que havia esperado todo esse tempo lá fora no frio mas que ele havia passado sem que a visse. pode entregar esse pacote, por favor? o porteiro não pôde evitar a pena que sentia da menina e que lhe transbordava aos olhos, mas cecília não sorriu quando ele disse que da próxima vez ela poderia esperar do lado de dentro. cecília quis dizer que a próxima vez seria da noite, do sereno, dos dentes que batiam, das pontas roxas dos dedos da mão que mal folheavam o livro, mas disse apenas que gostaria que fosse entregue ainda hoje, afinal precisa ser conservado em geladeira. mandou ainda um outro recado, talvez dois mais, que mais que claro não mereciam respostas (a relatividade que vá a merda, pensou antes de dar as costas). e respostas não mereceram até que a noite, amiga, esfriasse ainda mais.

1 comentários:

Bruno Jugend disse...

O seu texto escorre feito MANTEIGA.

Adoro manteiga.

 

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