28 maio 2009

A menina na janela





Acordo cedo. Tenho meus afazeres: o café, o trabalho, as planilhas, o futebol com os amigos, as coisas da casa. Pra rua, vou às sete, e de lá não costumo ter hora pra sair. A rua é só a rua. O apartamento é claustrofóbico: quando chega dezoito sinto seus espasmos, como uma pequena e inofensiva agonia diária por sentir-se tão urbano. Fiz meu o décimo segundo andar (o 'meu' é sentido figurado; devem haver mais cinco ou seis outros e passo por todos no corredor, mas vivemos em ignorância mútua, eu e meus vizinhos. Penso se haverá cumplicidade maior que esta).

Do lado de dentro sou eu, a tevê e filmes que coleciono só para os momentos ociosos. Fiz de tudo bem equipado, nos moldes para se viver confortável. Nada me falta - a não ser todas aquelas coisas que ainda não comprei.

Dois dias por semana, chego cedo. Costumava arrumar sempre outras pequenas ocupações, pra ter (também sempre) de chegar em casa apenas para dormir. Que mais fazer, afinal? Aconteceu que dia desses, algumas semanas atrás, choveu uma chuva triste e pesada e da rua fui-me, encontrar o apartamento. Pra que não me molhasse todos os móveis (venta muito no décimo segundo), teria de fechar a janela. Foi o que fiz. Era o horário da angústia e o apartamento parecia esperar da chuva uma solução pra todo aquele sufoco.
Eu não era o único a perceber.

O prédio é de rua, mas as janelas do apartamento são para os fundos, fazendo da vista nada muito encantador. Conto outros sete prédios, cujas janelas posso acompanhar quase de perto - a sensação é de toque ao alcance das mãos. Assustadora impressão de tantas vidas encaixotadas, tão urbanas, tão banais.

Àquela chuva aproveitavam de maneiras não tão diferentes: vi alguém que lavava a louça, alguém que assistia a novela, alguém que punha as crianças pra dormir, mesmo embora ainda fossem dezenove. Havia também alguém de janelas fechadas mas luzes acesas, alguém de janelas abertas, alguém correndo para fechá-las antes que tudo submergisse. Um andar acima, alguém acendia a luz. A menina, que devia ter a idade das horas - quem sabe um pouco mais - fez o contrário do dominó: abria uma fresta dos vidros e parecia sentar. Acendeu um cigarro. Olhava o letreiro que dizia a temperatura.

Aquela luz era de cor mais escura, talvez uma lâmpada fraca. A menina alternava levar o cigarro à boca e apoiar a cabeça em uma das mãos, os dois braços seguros pelo parapeito. Não parecia se importar com o frio. O vento, que agredia só à mim, não parecia ser incômodo. A menina de alcinhas destoava dos cachecóis e casacos e cobertas que estampavam os demais espetáculos. Mas não fomos além, eu e ela: o cigarro queimou-se todo; a menina sumiu para dentro. O prédio dela não tinha espasmos.

Não sei se é esse o ritual de todo-dia. Era o dia depois quando por outro motivo cheguei cedo em casa. O céu não era escuro como no primeiro encontro. A menina estava lá. Havia um cigarro e a menina falava. Quis fechar a janela, mas não pude. A menina continuava a falar e eu quase ouvia - se as dezoito não fossem assim tão barulhentas, se esse monte de concreto não trincasse tanto. Não havia mais ninguém, também não havia um telefone. A menina falava para um pequeno aparelho, e imaginei e tomei como verdade que devia ser um gravador. Falava as deixas de uma peça de teatro, como que pra decorar. Falava coisas que não poderia esquecer no dia seguinte, ou nunca mais. Falava idéias para um trabalho futuro. Ou falava ainda outra coisa qualquer, mas o que quer que fosse que dizia, não deixaria a cena menos sedutora.
Outra vez o cigarro acabou e a menina sumiu.

Pensei se teria saído de casa, pensei se estaria sozinha, se seria sozinha, se desejava falar para qualquer coisa que ouvisse. Podia deduzir o apartamento; sabia o andar, o prédio, a porta. Não arrisquei.

Era pontual, a menina na janela. Passei a pensar que fumava apenas um cigarro por dia, só naquela janela. Só para mim. As dezenove passaram então a comportar um compromisso inadiável e inalcansável, mas nenhum dos adjetivos me desanimava. Os encontros eram sadios. O tempo de um cigarro. Embora possa parecer, a menina não seguia lógica alguma: por vezes, um cigarro e um livro, que era mais útil como apoio de mãos que como literatura; o cigarro e uma xícara que, pra mim, poderia conter tanto café quanto conhaque; o cigarro e aquele mudo ouvinte, o mais seguro e compreensivo divã que já pude perceber. Se fazia calor, poderia haver luvas. No frio, eu não estranharia a camisola. A menina na janela combinava o ameno e a surpresa.

Numa dessas noites pensei que me percebia. O olhar desviou do painel para o meu prédio. O centro nunca foi tão silencioso ou foram meus espasmos que entraram em sintonia com aqueles do edifício inteiro, porque nada se moveu por sete ou oito segundos. A menina rastreou com o olhar cada uma das janelas dos sete prédios que também via. Poderia estar buscando compreensão ou cumplicidade ou poderia apenas querer descansar. Naquele dia não haviam livros ou xícaras. O cigarro fazia par com um telefone. Naquele dia o cigarro me falou mais do que ela.

Nada mudou em meus afazeres, a companhia ainda é a tevê ou eventualmente uma ou outra moça, ignorantes da existência das vidas além da minha janela, ignorantes principalmente da vida da menina. Quando posso, tento estar ali para o espetáculo, e me dói saber que ele acontece quer eu esteja lá ou não. Meu intervalo só existe por causa dela, mas o dela é todo indiferente a mim.
A menina na janela não precisa de platéia. Não me parece tola; são grandes chances de que tenha me notado, e me põe curioso imaginar se suas atitudes são as mesmas quando não estou para assistir. Ah, devaneio, teu nome é pretensão.

A menina combina palco e escuridão.

Imagino o que faz quando some. O que vê quando olha o espelho, o que come, o que há na xícara, se o aparelho na mão não é mais que a espera. Nenhuma das respostas me atrai, nenhuma das respostas faria de algo outra coisa diferente. Assim como ela, não preciso mais do que o tempo daquele cigarro, desde que ele não falte. Desde que todos os dias. Desde que sempre às dezenove. Desde que sempre só para mim.

O prédio da menina não tinha espasmos.







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