06 maio 2010

O menor dos incômodos


A mulher sentada na bancada número 2 tinha mãos jovens e dedos longos de pianista. Em conversas banais na hora do almoço, junto a pessoas que ela conhecia sem querer, costumava mentir que fora pianista de renome em Ijuí, cidade onde nasceu e cresceu e não fez nada mais que isso. Era de inventar pequenos detalhes e colocá-los meio à sua história, já que ela por si só era assim tão sem graça. Não havia uma casa com quintal onde ela brincava com seus irmãos ao por-do-sol. Tampouco havia irmãos, e o sol, quando baixava, baixava longe do primeiro pavimento do pequeno edifício da Sra. Maldona e ela não podia ver a não ser que subisse o morro, coisa que tinha preguiça. Não havia talento especial ou festas de fim de ano; vivia na melancolia indissolúvel das vidas comuns.

Nada de fato lhe incomodava e chegou a ir em um ou dois médicos, a fim de perguntar se era assim mesmo. Pensava como poderia não se incomodar, as pessoas à sua volta estavam sempre de rosto franzido, ou falando alto ao telefone, ou planejando fugas ou coisas que jamais irão cumprir, mas ainda assim as via reagindo a coisas que, para ela, eram sempre imaginadas como "grandes incômodos". Que não conhecia.

Era assim, incomodava-se de ter as meias sempre molhadas nos dias de chuva, ou de pequenos barulhos nas madrugadas. Mas não planejava modos de evitá-los e nem via motivos para tal.

O último médico lhe havia dito que incômodos não eram coisas das quais se deveria sentir falta: na verdade, era uma espécie de bênção não tê-los. Saiu da consulta pensando mas que médico idiota, mal imagina ele que a falta de incômodos é o pior incômodo de todos. Riu da própria contradição e esqueceu o assunto por todo o resto da semana de trabalho.

Só se lembrou no sábado, quando pensava o que faria com a begônia que tinha murchado. Não vive mais, pensou, e quis perguntar se ela então também havia deixado de viver, com a diferença de que não teria percebido. Ouviu alguns barulhos de carro na rua e pensou que, se o mundo fosse justo, não haveriam motoristas no paraíso. Logo, estaria viva.

Três semanas antes o carteiro lhe trouxera uma carta cujo envelope estava escrito à mão - coisa rara nestes dias. Dentro, um bilhete pequeno que convidava Olívia a arrumar suas coisas e partir. Partir para morar "lá".
Olívia não havia podido pensar sobre o bilhete até então. Até aquele sábado.
Procurou dentro de si e reconheceu o bilhete guardado, sozinho, na caixinha das "pendências". Era uma pendência bastarda, essa: não se podia arrumar. Cumprir. Possuía origem, mas resolvê-la requeria subsídios que ela não dominava. Não podia pensar sobre o bilhete, respondê-lo, decidir o que faria com ele. Não podia queimá-lo. Era indestrutível.

Para se distrair, passou a pensar em como seria caso fosse; largasse tudo e fosse morar lá. E se eu fosse. A primeira consequência construída nos pensamentos de Olívia foi o destino de seu posto de trabalho: seria substituída com alguma pena mas nenhum esforço, não que Olívia não fosse boa e competente, mas também não era a única a poder manejar as necessidades da bancada número 2. Alguns documentos importantes, algumas assinaturas, entregariam o dinheiro, registrariam as trocas. Comprovante. Obrigada, até logo.
Pensou depois no apartamento. Entregaria para alguma amiga, algum parente? Venderia? E todas as coisas, os móveis, os livros, doaria tudo para uma instituição de caridade ou coisa parecida. Se fosse, o apartamento não seria um problema. Poderia também deixá-lo, simplesmente. Essa mania das pessoas de querer resolver até o que não é um problema.

Chegou ao fim da lista; não conseguia pensar em mais nada que poderia ter de arrumar. Se fosse, poderia ir amanhã, assim que o sol surgisse. Ou antes, até. Poderia ir hoje, se quisesse. Tinha um dinheiro na bolsa, era questão de preparar um lanche e uma maleta pequena. Dois vestidos simples, uma ou cinco camisas, escova de cabelo, maquilagem.

Arrumou a maleta, jogou a begônia no lixo - não sem remorso -, passou um café. Sentiu um carinho enorme por cada um dos móveis dispostos no apartamento. Limpou um por um, com calma. Organizou cada um dos seus pertences, colocou os livros em ordem de tamanho, sacudiu as almofadas, as colchas, passou uma água nas louças. Ajeitou o banheiro, a área da lavanderia, o corredor.
Separou as roupas que lembrava que agradavam as amigas e empilhou-as todas em uma sacola perto da porta.

Abriu as janelas, a noite já havia passado e o sol começava a nascer em um céu cinza e púrpura, em um horizonte que não podia imaginar onde ficava. Achou a paisagem um dos espetáculos mais bonitos de qualquer semana.
Pensou que, se fosse, quando o visse novamente ele já não seria o mesmo.
Ela também.

Abriu a maleta, buscou a camisola. Vestiu. Deitou-se na cama recém arrumada.



1 comentários:

Bruno Jugend disse...

Mudou a decoração toda então.

 

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